Relações de dor e muito sofrimento

Que atire a primeira pedra quem nunca sentiu ciúmes. Na medida certa, o sentimento ajuda a apimentar as relações, mas quando passa da conta só provoca dor e sofrimento. Este ano, na Delegacia da Mulher, em Curitiba, já foram registrados 2.072 boletins de ocorrência e, segundo a delegada, Darli Rafael, o ciúme é ingrediente que aparece com freqüência como um dos estopins das brigas entre casais.

A psicóloga Silvana Martani explica que o ciúme na medida certa dá sabor aos relacionamentos. Mas quando começa a maltratar o outro é sinal que ele está passando da conta e a relação começa a ficar ameaçada. ?A medida do ciúme é o outro. Se ele está bem com a situação, tudo bem. O problema é quando o ciúme começa a incomodar?, explica.

O ciúme desmedido também não aparece de uma hora para outra. Ele nasce da insegurança, da baixa auto-estima e da imaturidade. A origem também pode estar na infância. ?Se a criança não consegue lidar com as suas inseguranças, isto pode se refletir na vida adulta?, fala.

O problema não escolhe sexo, mas as mulheres são as que mais sofrem. A idade também é bem variada, o problema pode começar desde a adolescência até a velhice. Os homens ciumentos geralmente ficam violentos, mesmo porque eles têm o aval educacional. ?O machismo ainda está muito presente na sociedade?, fala Silvana. Já as mulheres não fazem estragos físicos, mas são extremamente destrutivas. ?Elas depreciam o outro, destroem a carreira e a profissão do seu alvo de ciúmes?, exemplifica a psicóloga.

Segundo ela, neste tipo de ciúme a fantasia e a realidade se confundem. Qualquer dúvida, qualquer atraso, olhar vago, ou atitude que o obsessivo julgue inadequada pode se transformar em denúncia de fatos, certezas de flagrantes, prontos para mostrar que houve traição. No ciúme patológico, vários sentimentos perturbadores se revezam. Entre eles a ansiedade, depressão, raiva, vergonha, humilhação, culpa, aumento do desejo sexual e a vingança. São eles que norteiam a atitude das pessoas. Existem ainda doenças psiquiátricas que têm no ciúme obsessivo um dos seus principais sintomas, como o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) e os Transtornos de Personalidade.

Sair desta situação sozinho ou apenas com a ajuda do companheiro é muito difícil. Não é o relacionamento do casal a causa dos problemas, mas a estrutura emocional dos dois que precisa de cuidados. Geralmente, o obsessivo precisa de psicoterapia e em alguns casos até de tratamento psiquiátrico.

Na maioria das vezes quem procura ajuda primeiro é a vítima do ciúmes. A orientação é para que ela saia da situação de vítima e comece a dar limites ao companheiro. Só quando ele encontra obstáculos, pára para pensar sobre o que está errado na relação. No entanto, quando a situação chega neste ponto, dificilmente os casamentos se salvam porque já houve muito sofrimento.

N.F, de 17 anos, está casado há 9 meses com a esposa A.S, de 26 anos. Ele acha que o ciúme dela está passando um pouco da medida. ?Acho que é porque sou mais novo e ela tem ciúmes dos meus amigos?, diz.

Ele ainda conta que com conversas eles já conseguiram melhorar o relacionamento. Decidiram que agora os dois só saem de casa para passear juntos. ?Procuro passar segurança?, diz.

O ciúme também é tema do curso de noivos realizado na Paróquia Nossa Senhora das Vitórias, no bairro Boqueirão. A coordenadora Maria de Lourdes da Silva Junior diz que é comum a noiva não deixar o noivo sair sozinho ou se ele olha para o lado, ela já fica preocupada. Com os homens, o problema são as roupas que elas usam. ?Orientamos que estas situações precisam ser resolvidas antes do casamento. Uma vez atendemos um casal que achava que a união não ia durar porque os dois tinham muito ciúmes. Depois que eles refletiram sobre o assunto, disseram que acabaram enxergando as coisas de modo diferente?, fala.

Vários casos acabam na Delegacia da Mulher

Foto: Aliocha Maurício/O Estado

Cômodo da Casa de Maria, uma entidade mantida pela Fundação de Ação Social (FAS), em Curitiba.

Quando o caso chega até a Delegacia da Mulher é porque a situação já chegou a um ponto insustentável. Segundo a delegada Darli Rafael, não é possível precisar em quantos casos o ciúme foi um dos maiores vilões, mas ela diz que ele aparece com freqüência. ?O marido está desempregado e sente ciúmes porque a mulher trabalha fora. Ele se sente inferiorizado e tenta fazer o mesmo com ela, acusando-a de estar traindo?, diz a delegada.

Em 2005 a delegacia registrou 4.196 boletins de ocorrência, mas outras três mil mulheres não quiseram registrar a queixa. Este ano os números estão parecidos. Com a nova legislação que entrou em vigor no do dia 22 de setembro, existe a expectativa de que o número de casos diminua. Hoje as agressões às mulheres são encaminhadas para o Juizado Especial Criminal, que prevê penas alternativas. Entre elas o pagamento de cestas básicas. Agora é a Justiça comum que vai cuidar dos casos e a pena pode chegar até três anos de detenção.

Em muitos casos, quando as mulheres fazem a denúncia não há mais como voltar para casa, então são encaminhadas para a Casa de Maria, uma entidade mantida pela Fundação de Ação Social (FAS) da Prefeitura de Curitiba. Lá recebem ajuda para retomar a própria vida.

A assistente social Nádia C. Moreira diz que quando as mulheres e as crianças chegam à casa a auto-estima está muito baixa e a saúde delas e dos filhos não está em bom estado. Em média já sofreram com o problema entre 10 e 15 anos. As crianças apresentam gripe, diarréia e desnutrição, e a mãe não fez seus exames preventivos. A primeira coisa a ser realizada é restabelecer a saúde de todos. Em seguida, as mães precisam decidir se querem se separar ou voltar para a antiga relação. Apenas 5,70% delas resolvem voltar. A maioria, quando termina os 60 dias de permanência na casa, já conseguiu reerguer a cabeça, começou a trabalhar e alugou uma casa. ?São outras pessoas. Melhoraram a auto-estima, estão com vontade de trabalhar e felizes com a conquista do direito de ir e vir?, destaca Nádia.

A assistente social diz ainda que o ciúme também estava embutido na maioria das relações. O marido ou companheiro enxerga a mulher como mercadoria e, por estar com problemas como a baixa auto-estima, começam a denegrí-las, chamando-as de infiéis. O efeito sobre as mulheres é devastador e muitas acabam acreditando. Por isso demoram tanto tempo para ter coragem de sair da relação, além de enfrentar ameaças de morte. ?Quando elas chegam aqui estão só com a roupa do corpo?, diz Nádia.

Quando o marido chega à fase da violência, ela vem acompanhada de atos de perversidade contra toda a família. ?Já vimos casos em que o marido fazia xixi no copo e fazia a família toda beber. Ele era o dono de todos. Ou ainda colocava música e fazia todos dançarem até quando ele mandasse parar?, conta Nádia. Segundo ela, de cada dez casos oito estão relacionados à saúde mental; outros dois a drogas e ao alcoolismo.

Na maioria das vezes, só quando a situação chega à Justiça é que o homem vê que a mulher não entra mais no jogo dele. Ele acaba se desinteressando e vai procurar outra vítima. No entanto, antes usa algumas estratégias para fazer a mulher voltar. Uma delas é pedir a guarda dos filhos. ?Ele não quer os filhos, quer aquela mulher. Pode ser que ele até ganhe a guarda, mas em poucos meses devolve os filhos se a mulher se manter firme na decisão de não voltar. O último caso assim não passou três meses e ele devolveu a guarda do filho. Depois nunca mais procurou a família?, fala a assistente social.

No entanto, também há casos em que a mulher prefere voltar para o marido, porque se ficar sozinha terá que ir à luta. Nesta situação, é feito um acompanhamento da família e se os filhos continuarem sofrendo, a guarda das crianças poderá ser retirada. ?Aí o nosso problema não é mais a mulher e sim os filhos?, fala. (EW)

Quando o homem é a vítima

Mas a mulher não é sempre a vítima do homem ciumento. Às vezes é ela quem perde o controle do sentimento e começa a sufocar o outro. Hoje existem grupos de auto-ajuda espalhados pelo país, e funcionam nos moldes do Alcoólicos Anônimos (AA). Em reuniões semanais, elas se encontram e falam sobre suas angústias e vitórias.

Em Curitiba o grupo Mulheres que Amam Demais Anônimo (Mada) foi fundado em 2001 por uma mulher que prefere não se identificar, e que sofreu com o problema. Ela conheceu o grupo quando foi procurar ajuda no Rio de Janeiro e sofreu muito até conseguir o equilíbrio. Ela conta que as mulheres que amam demais buscam controlar os outros. Pode ser um amigo, filho, pai, mãe, primo, mas o mais freqüente é o controle sobre o marido ou companheiro. ?A mulher liga o tempo todo, quer saber todos os passos.? Com isto acabam deixando a vida pessoal de lado, chegam a perder a carreira, a vida familiar e social. No Mada elas encontram outras mulheres que dividem as mesmas aflições e conseguem forças para retomar a própria vida. As reuniões ocorrem aos sábados, das 17h às 19h, na Rua 24 de Maio, 95. Centro. Anexo à Igreja Bom Jesus, em Curitiba. Mais informações pelo telefone (41) 3343-7884. (EW)

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