Quando um ?mero castigo? vira um trauma permanente

Palmatória, ajoelhar-se no milho, puxão de orelha e até tapinhas. Estas são as modalidades de castigo mais tradicionais na sociedade, seja ela antiga ou atual. Porém, em uma época em que a violência é tão freqüente, crianças são atendidas na rede de proteção da Prefeitura de Curitiba e em ongs da capital com freqüência, vítimas de pais e mães que batem em seus filhos com fio de telefone até torturá-las gravemente, queimando-as com cigarro ou dando murros no rosto. Esta chocante descrição mostra a linha tênue que existe entre o que algumas pessoas pensam ser um ?mero castigo? e algo que pode mudar a vida de uma criança para sempre. Os especialistas são unânimes em afirmar: castigar não educa ninguém e qualquer punição considerada leve se transforma em uma violência muito maior.

Prova disso é que a maior parte das notificações na Rede de Proteção de Curitiba é decorrente de sanções de disciplina, informa a coordenadora da rede na Secretaria Municipal de Saúde, a pediatra Hedi Muraro. ?Na maior parte dos casos percebemos que o fato aconteceu como uma forma de disciplinar a criança. Mas essa disciplina é entre aspas, pois não chega ao seu objetivo, que seria educar. Nós somos totalmente contra o castigo físico e entendemos que o educar é um processo no qual a criança não deve sentir dor?, alerta a médica. Segundo ela, só no ano passado, a rede atendeu 3.390 casos de violência doméstica contra crianças, a maioria em decorrência dos castigos aplicados pelos pais.

Desta forma, os especialistas dizem que um castigo chega, em 98% das vezes, a se transformar em uma violência irreparável. A advogada do Centro de Combate à Violência Infantil (Cecovi), Fernanda Decesaro, explica que isso é evidenciado na maior parte dos atendimentos do centro. ?A agressão física é gradativa, começa com um tapinha e acaba chegando até em uma tortura. A maior parte das crianças que atendemos são aquelas que, em situações anteriores, foram vítimas de uma surrinha, como dizem os pais. Então, o tapinha, o puxão de orelha, o castigo em geral é muito perigoso?, diz a advogada. E para piorar a situação, de 50% a 60% dos casos atendidos no Cecovi são de reincidência.

Na opinião da pediatra e ebiatra (especialista em adolescentes) e presidente do Departamento Científico de Segurança da Sociedade Paranaense de Pediatria, Luci Pfeifer, antes de planejarem um filho, muitos pais não dão conta de que criar uma criança demanda tempo, investimento e muita paciência. ?Então, como alguns pais trazem marcas da infância, acabam reproduzindo o que aconteceu com eles e batem nas crianças. Mas sabemos que muitas pessoas acham que uma surra, um castigo de vez em quando não faz mal, até porque a maioria dos pais que agride tem a intenção de educar. Porém, se existe uma estrutura mínima na família, uma mudança de atitude desses pais, os resultados são imediatos, tanto em casa como na escola dessa criança?, alerta.

Luci lembra ainda que não só a violência física deixa marcas irreversíveis. ?A agressão verbal do responsável pode destruir a personalidade de uma criança?, afirma.

Grupo almeja mudanças no Código Penal

Ciciro Back/O Estado
Machado: leve para o adulto é muito grave para a criança.

Profissionais de Direito, Medicina e Sociologia criaram um grupo com o objetivo de defender os direitos das crianças e adolescentes. Uma das idéias é mudar o Código Penal no que diz respeito aos castigos físicos e maus-tratos. O grupo foi batizado de Dedica e funciona com membros da Comissão Criança e Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná (OAB-PR).

Alberto Machado, promotor de Justiça componente do Dedica, explica que a idéia é fazer com que os artigos atendam com mais eficiência os problemas ligados às crianças e aos adolescentes, já que a redação do Código Penal é da década de 40. ?Há determinadas agressões feitas tanto às crianças e aos adultos que parecem semelhantes, mas não são. O que pode ser leve para um adulto é muito grave para uma criança. Então o nosso objetivo é adequar os artigos a essa faixa etária da população   do zero aos 18 anos?, explica.

Segundo Machado, pode-se até incluir um novo artigo contemplando crianças e adolescentes. ?Temos leis adultocêntricas, pois os filhos eram invisíveis na década de 40. As penalidades para maus-tratos cometidos por estranhos à criança são menores do que para o crime cometido pelos pais, por exemplo. Está na hora de mudar isso, adequar à realidade?, diz o promotor.

Outra componente do Dedica, Ana Christina Brito Lopes, chama a atenção para o fato de que em qualquer sociedade a criança é o ser mais vulnerável, sofre um processo de vitimização, porque depende da família. Desta forma, na opinião da advogada, é importante a mudança na legislação. ?Se o adulto leva um tapa na rua, por exemplo, ele sabe como e onde recorrer. Mas a criança sofre violência e, pela sua dependência, não tem a quem recorrer e pode passar o resto de sua infância sofrendo com isso?, alerta. Para os dois representantes da lei, não basta planejamento familiar, como o que está acontecendo agora no governo Lula. ?É necessário orientar as famílias de como vão criar seus filhos. Pagamos tributos, temos de exigir isso?, comenta o promotor Machado.

No dia 15 de junho, até mesmo o governo federal entrou na discussão dos castigos. O presidente Lula e a apresentadora Xuxa lançaram campanha contra castigos físicos e humilhantes. A campanha foi batizada de ?Não Bata, Eduque!?. (MA)

Crianças precisam de limites

Foto: Fábio Alexandre

Bodê: exemplo dos pais.

Castigar crianças na intenção de discipliná-las é uma prática antiga, trazida para o Brasil pelos jesuítas, no século XVI. O escritor Graciliano Ramos não gostava de livros quando era pequeno, mas aprendeu a simpatizar com a literatura depois de ser castigado pelo pai com palmatória. Apesar da prática do castigo ser condenada, os estudiosos são unânimes em dizer que as crianças precisam de limites.

A advogada do Centro de Combate à Violência (Cecovi), Fernanda Decesaro, dá dicas para os pais que não sabem mais o que fazer para disciplinar os filhos da maneira correta. ?A primeira dica é sempre conversar e dar exemplos. Ouvir com atenção o que a criança tem a dizer também é muito importante. Por último, os limites têm de ser justos, como repreender verbalmente e suspender alguns privilégios?, diz.

A escritora e mestre em Educação Tânia Zagury também condena o castigo físico, mas ressalta a importância das sanções proporcionais às faltas cometidas. ?Muitas vezes os pais só chamam a atenção depois da criança repetir o erro e ainda aplicam uma sanção que não tem nenhuma relação com o que ela fez. Por exemplo, a criança está pulando no sofá e os pais a deixam sem ver TV uma semana. O correto é explicar a ela qual sua responsabilidade naquele ato e fazê-la ir para o quarto imediatamente e deixar de pular no sofá. Aí ela começa a entender a relação de uma coisa com a outra?, aconselha.

O sociólogo Pedro Bodê, membro do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro da Comissão Criança e Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná (OAB-PR), chama a atenção para o exemplo dos pais. ?É fundamental que entendamos que uma criança não tira o respeito de ninguém sem um motivo aparente. Se ela o faz é porque já houve um conjunto de atos cometidos pelos pais que a levaram a perder o respeito?, comenta.

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