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Para conter influência chinesa, Europa aceita devolver arte que tirou da África

Poucos meses depois de tomar posse, em 2017, o presidente da França, Emmanuel Macron, decidiu que um de seus objetivos de política externa seria relançar as ambições de seu país na África, região que viu a China e outros emergentes assumirem papel de liderança. Seus assessores recomendaram a ele usar um novo modelo para reconstruir as relações com o continente: devolver parte das obras de arte africanas pilhadas por séculos.

Macron viajou até Burkina Fasso e, num discurso numa universidade local para 800 alunos, anunciou: “Não posso aceitar que uma grande parte do patrimônio cultural de vários países africanos esteja na França”. “Existem explicações históricas. Mas não há uma justificativa válida, durável e incondicional. O patrimônio africano não pode estar apenas em coleções privadas e museus europeus”, afirmou.

Naquele discurso, ele declarou que o retorno de obras de arte para a África seria uma de suas “prioridades” e, em cinco anos, haveria uma restituição “do patrimônio africano para a África”, em nome de uma “nova relação de amizade”.

Em 2016, quando Benin solicitou oficialmente que 5 mil peças roubadas por colonizadores franceses fossem devolvidas, o Ministério das Relações Exteriores da França alegou que tais peças faziam parte do patrimônio nacional. O governo se baseava no édito de Moulins, de 1566, que estabelecia que toda a propriedade do Estado era inalienável. Macron estava oferecendo uma revisão de uma política de quase 500 anos.

Diplomatas, historiadores e negociadores consultados pela jornal O Estado de S. Paulo, porém, sustentam que o gesto não tem apenas um valor histórico. A meta é reconstruir a relação entre a Europa e o continente africano e frear a onda de contratos que suas ex-colônias passaram a assinar com China, Rússia e Índia.

Avanço

Este ano será o décimo consecutivo em que a China será o maior parceiro comercial da África. Entre 2000 e 2015, o comércio entre Pequim e o continente se multiplicou por sete e os chineses passaram a construir portos, estradas e até estádios de futebol pela África. Até meados de 2018, a China havia exportado US$ 99 bilhões ao continente e dominava 19% do mercado local. Já a fatia dos europeus era de apenas 9%.

Ainda que a população africana questione a presença dos chineses, eles são mais bem-vistos que os europeus, ainda marcados pelos atos do colonialismo de séculos. Uma recente pesquisa realizada pelo Pew Research Center indicou que mais de 70% dos entrevistados no Quênia, Nigéria, Senegal ou Tanzânia tinham uma imagem positiva da China. Com os europeus, essa taxa era inferior a 50%.

A gigante Huawei bateu as europeias Alcatel e Ericson para ficar praticamente com o monopólio dos celulares na Etiópia. Em Moçambique, foram os chineses da Startimes que levaram contratos para permitir a migração das televisões do país para o modelo digital. No pacote de canais oferecidos, foi incluída uma ampla gama de emissoras chinesas transmitidas em inglês.

Em setembro, a Comissão Europeia anunciou uma “nova aliança” com a África, num projeto de parcerias que prometia criar 10 milhões de empregos no continente. Nas palavras do presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker, essa seria uma “parceria entre parceiros iguais”. Bruxelas evitou colocar condições como a realização de eleições, respeito aos direitos humanos e outros critérios para liberar empréstimos.

Mas nas chancelarias dos governos europeus, a nova relação precisaria passar por um reconhecimento de que a demanda dos africanos por recuperar parte de sua história é legítima.

Ações

Para colocar em prática a devolução, o governo francês convidou a historiadora francesa Bénédicte Savoy e o escritor senegalês Felwine Sarr, para conduzir um levantamento sobre a arte africana na França e apresentar recomendações. Em novembro, elas foram publicadas e pedem que Paris abandone as práticas de empréstimos de peças de arte e inicie uma devolução definitiva. Ficariam nos museus franceses apenas as obras adquiridas legitimamente.

Também seria feito um levantamento completo das 90 mil peças africanas espalhadas pelos museus franceses. Apenas o Quai Branly, em Paris, teria cerca de 70 mil objetos. A primeira etapa envolveria a entrega simbólica de 24 itens aos governos do Benin, Mali e outros, frutos de uma pilhagem em 1890.

Numa segunda fase, a França entregaria a cada governo africano um inventário de tudo o que tem e um processo de restituição seria iniciado. O estudo diz que 65% das peças hoje nos museus foram retiradas de seus lugares de origem por força, roubo ou colonização.

“O que estamos fazendo é indo bem mais longe do que devolver obras de arte”, disse Felwine Sarr. “Esses objetos são mediadores de uma nova relação. É um espaço tectônico e se isso se movimenta, outras partes da relação se movimentam.”

O gesto francês abriu uma caixa de Pandora pela Europa e passou a colocar pressão sobre outros governos e museus. Alguns admitem que esse caminho não tem volta.

Para o diretor do Museu Real de Tervuren, na Bélgica, Guido Gryseels, chegou o momento de organizar esse processo, sob uma coordenação da Unesco. Sua instituição conta com 120 mil objetos coletados entre o fim do século 19 e a independência do Congo Belga, em 1960. O país chegou a se chamar Zaire e hoje é a República Democrática do Congo.

Na Alemanha, poucos meses depois do gesto do presidente francês, dezenas de institutos e acadêmicos alemães escreveram uma carta à chanceler Angela Merkel pedindo que Berlim assumisse o papel de liderar os trabalhos de restituição da arte africana. Hoje, em Berlim, o busto de Nefertite ainda é mantido em uma sala com as condições de temperatura iguais às existentes no Egito, de onde ele foi tirada em 1913.

Jürgen Zimmerer, historiador da Universidade de Hamburgo e principal referência na Alemanha na pesquisa sobre o passado colonial, confirma a dimensão política no debate sobre a arte africana. “No caso de Macron, ele busca ganhar terreno na África e a questão cultural é um dos instrumentos”, disse ao jornal. “Trata-se de um apoio de projetos políticos na África.” Em sua avaliação, a Europa foi “lenta” para perceber o que estava ocorrendo na África com a chegada de chineses.

Pressionado, o governo alemão também fez alguns gestos, mas considerados por Zimmerer insuficientes. A ministra de Cultura, Monika Gruetters, sugeriu que o mesmo modelo usado para devolver objetos dos judeus durante o nazismo fosse adotado com a África.

Em Londres, houve um acordo na semana passada entre o governo britânico, museus e a Nigéria, que negociavam há onze anos a devolução dos “Bronzes do Benin”, uma coleção de 700 peças no British Museum que chegaram à Inglaterra há mais de cem anos, levadas por soldados britânicos no Reino de Benin, em uma região hoje pertencente à Nigéria. O acordo inclui um empréstimo das peças ao país africano, o que foi considerado um primeiro gesto do antigo império britânico.

Mas nem todos estão de acordo. “O British Museum é um museu do mundo para o mundo”, defendeu o ex-curador da instituição Chris Spring. “Precisamos pensar em Londres como uma cidade africana global. É muito importante que as pessoas de descendência africana vivendo no Reino Unido ou na Europa em geral possam ver os objetos de sua própria cultura”, justificou.

Do lado africano, esse argumento é considerado inaceitável. Em um recente evento organizado pela Unesco em Paris para tratar da questão da devolução dos objetos, o ministro da Cultura do Senegal, Abdou Latif Coulibaly, insistiu que a “África está pronta” para receber seus tesouros de volta.

Em Dakar, no dia 6, o governo do Senegal apresentou o Museu das Civilizações Negras, que custou ¤ 30 milhões e estaria em condições de receber as obras que estão na Europa. Jürgen Zimmerer destaca a ironia da situação: “O prédio foi financiado pelo governo da China.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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