Palavras, ficção e filosofia

Ah, as palavras! Parafraseando o compositor, ?quanta verdade tristonha ou mentira risonha? as palavras contêm ! Toda vez que um texto está escrito em primeira pessoa do singular, o leitor imagina estar lendo uma confissão, um depoimento verdadeiro do escritor. A associação entre escrita e vida se faz de imediato. Ao mesmo tempo, quanta credibilidade adquirem as palavras quando escritas! Ainda atribuímos a elas a qualidade maior de representar a realidade, qualquer que ela seja, em qualquer sentido que a entendamos. Sob essa ótica, as palavras escritas fixam e documentam, registram e identificam, reproduzem e atestam.

Reverenciamos nos textos, com a autoridade conferida pelo autor – desnecessário lembrar a mesma origem dos dois vocábulos – a capacidade que têm as palavras de expor o pensamento, dispor os acontecimentos, narrar o acontecido. O leitor que deposita confiança na palavra escrita, toma como verdade o que lê num texto. No entanto, o discurso humano nem sempre provém do real, enquanto seu simulacro, pois pode criar o real a partir da construção, em frases, de uma virtualidade tão sistêmica e densa que desvenda e defende um outro modo de entender aquilo que está posto no mundo. Tal é a força da ficção. A literatura é um fingimento tão verdadeiro que, por exemplo, quando as autobiografias dos artistas ?são obras de arte, elas são transfiguração da vida, que nelas se apresenta de modo tão irreconhecível, que é absurdo querer delas extrair informações sobre a biografia do autor: são como uma criação nova, uma pura invenção da fantasia, que se rege unicamente por si, independentemente das personagens reais dos acontecimentos, como aparece, por exemplo, no encanto das histórias de amor contidas na autobiografia de Goethe onde Gretchen e Federica são eternas figuras de arte mais do que pessoas reais, já agora desaparecidas?, ensina Luigi Pareyson em Os problemas da estética.

Na criação ficcional, a personagem é elemento narrativo essencial. Desafia o leitor a encontrar paralelos na realidade, a descobrir o modelo que a originou, a revelar os motivos que a fazem, ou não, sedutora, inesquecível. Cada ficcionista busca e justifica sua criação e a fonte de onde se originou esse ?ser de papel?. Beth Brait recolheu em A personagem alguns depoimentos preciosos sobre a criação literária de escritores brasileiros. O romancista Antônio Torres assim explica o nascimento de suas personagens: ?Nascem quando menos os esperamos. Rondam as noites, nos perseguem por madrugadas a fio. A princípio são imagens vagas, feições humanas de quem mal nos lembramos, sombras de um passado que o presente quer resgatar. (…) Uma gente que se cria, anda por suas próprias pernas e nos impõe o seu próprio destino?. Doc Comparato descreve seu processo de criação com palavras de construtor: ?No princípio, a personagem se apresenta fragmentada na minha imaginação. Conheço muito pouco dela: um tique, um comportamento particular perante um acontecimento, uma postura do corpo, um olhar, um sentimento predominante, uma visão fugaz etc. (…) Depois, com esses fragmentos, vou montando um ser; recortando, recolhendo e colando daqui e dali. Com pedaços da minha própria vivência e memória busco um corpo. Transformando bocados de personagens de outros autores e obras, repenso?. Ignácio de Loyola Brandão aproxima de si essa criação ficcional e afirma: ?Vêm de mim. Sou eu mesmo uns quarenta por cento. Tem vez que é bem mais: sessenta, setenta, cem por cento. Depende da piração. Mas a maior parte das vezes vêm de tudo que me rodeia, das pessoas que estão à minha volta. De gente que vi, observei, convivi, entrevistei, amei?.

Torna-se evidente na teoria e na prática do texto escrito de ficção que a vida do autor pode servir de fundamento e base para a criação de algumas personagens ou de parte delas, mas são a leitura e o processo de observação e fusão os responsáveis relevantes para a existência desses seres, reais apenas num mundo de palavras.

Portanto, um escrito, mesmo em primeira pessoa, apresentará necessariamente um caráter ambíguo, a exigir cautela na associação entre criador e criatura. Mas um texto, após sua divulgação, ganha liberdade e amplitude, permitindo a interpretação incontrolável dos leitores. O mesmo Pareyson declara que ?a natureza pessoal da interpretação é uma condição fatal e intransponível, que confere a todo o nosso conhecimento um caráter irremediavelmente subjetivo?.

Há, portanto, nos textos inventados, ficcionalizados, o encontro de diferentes e moduladas subjetividades: o autor se ausenta enquanto costura características e comportamentos de outros sujeitos, e o leitor que, a partir de seu repertório, interpreta o texto que lê.

Palavras convencem e mentem, desvendam mundos e ocultam verdades, reconstituem o que já desapareceu e projetam o que há de vir, seduzem e propõem enigmas. Nessas e muitas outras configurações, o leitor deve recebê-las, sempre, com a sensatez da dúvida, com desconfiança e interrogação. No caso o texto inventado, tomar uma personagem pela pessoa do autor é acreditar na ficção de uma ficção. Não será um belo jogo de espelhos?

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