Em 1905, Coelho Neto publicou um drama social em 3 atos, intitulado A muralha, em que eram descritos os conflitos de Estela, uma mulher honesta vivendo na casa dos sogros. Com o peso das dívidas contraídas por uma vida de luxos, a sogra pede à nora que receba os favores de um homem rico, que poderia sanar todos os problemas financeiros da família. Estela recusa-se e decide enfrentar os preconceitos da sociedade e abandona casa e marido, numa cena dramaticamente exagerada ao final da peça. Ao enfrentar verbalmente sogros e marido, expõe seus argumentos, revolucionários para a época, mesmo numa cidade cosmopolita como o Rio de Janeiro: ?Para livrar-me com honra, nem Deus, nem o amor de meu pai, nem a Lei, que tudo purifica, nem a morte, que tudo redime, teriam poder bastante. Só há uma pessoa capaz de valer-me. Eu! Tenho um destino: o trabalho. Qualquer que ele seja, é sempre nobre: glorifica e defende. É uma redenção e um refúgio.(…) Será sempre o trabalho (…) será o meu amante?.
Essa glorificação do trabalho é confirmada pela personagem Elisa de outra peça, A herança, de Júlia Lopes de Almeida, datada de 1909. Diz a personagem, dirigindo-se à sogra: ?Seu filho era rico, e a senhora pensava que eu me tivesse fascinado pelo dinheiro, sem perceber que se algum de nós sacrificava alguma coisa ao outro era eu, eu, que por imposição dele interrompi os meus estudos, cortei o meu futuro, todas as minhas ambições! (…) por aquela porta, por onde entrei com meu marido num dia azul, sairei sozinha num dia de tempestade. Vim para a felicidade que não encontrei, vou para o imprevisto, que talvez me socorra!?
Os dois textos registram o momento da história em que a mulher burguesa se vê confrontada entre o amor, a família, a casa, e o trabalho fora do abrigo familiar. Sorte semelhante não tiveram as operárias do Germinal, de Emile Zola. Ou Bertoleza, de O cortiço, de Aluísio Azevedo. Origem social diversa, trabalho e recompensa igualmente diversos. Iguais, no entanto, no drama de sustentar o próprio corpo com o sal e o salário provindos do trabalho. Trocar a engrenagem acolchoada do ambiente burguês pela roda dentada do mundo do trabalho, ou ser triturada em mecanismos de exploração e mandíbulas de predador não distanciaram tão substancialmente uma ou outra personagem.
Cumpria-se nessas narrativas a ação de trabalhar em seus plenos sentidos, em especial o etimológico. No dicionário Houaiss, trabalho tem origem no vocábulo latino tripalìum ?instrumento de tortura?, der. do adj. tripális,e ?sustentado por três estacas ou mourões? donde o verbo do romanço. *tripaliare, fonte do port. trabalhar (do fr. travailler, esp. trabajar, it. traballare), de que trabalho é regressivo por razões semânticas: o ?suplício? identificado a ?trabalho?.
Tem origem distante a preferência macunaímica pela preguiça! Na Idade Média, o trabalho associou-se à punição, ao suor do próprio rosto como castigo divino e genesíaco. Para fugir à pena, foi aumentado o peso do prazer. Na relação contraditória, dialética e prismática de trabalho e prazer recomeçamos, em cada dia de todos os anos de nossa vida profissional, a viver o domínio do canto da cigarra misturado à operosidade da formiga. Sem distinção entre o trabalho masculino e o feminino, ambos atores sujeitos ao imponderável, ao improvável, à desatomatização. Sujeitos muitas vezes esquecidos de si para prestar vassalagem a outros. Trabalhadores agrilhoados ao trabalho, repetitivos e maquinais quando dispensam o canto criador da arte e sua fruição.
A leitura também é um trabalho, um investimento de saberes e competências para a produção de sentidos com o objetivo de aprender e transformar. Mesmo em estado de repouso, trabalham mãos, olhos e cérebro traduzindo sinais gráficos em compreensão, reflexão, analogias.
Scholes, em Protocolos de leitura, afirma que a leitura é uma tarefa construtiva. O leitor ?re-escreve o texto lido, atualiza-o cronologicamente e associa-o a um novo contexto?, como afirma Júlio Pimentel Pinto. Não há no processo dessa interpretação, lugar para a preguiça e a passividade, sob pena de se apagar a essência da atividade leitora.
Histórias de trabalho interpretadas pelo trabalho de quem as lê. A aventura de sair do aconchego para a dura batalha dos dias é análoga ao leitor que abandona interpretações cristalizadas em busca da aventura de construir sentidos, que se multiplicam. Os textos a serem trabalhados por esse leitor-operário têm a mesma proposta dos textos pictóricos que João Cabral sintetizou em A lição de pintura:
?Quadro nenhum está acabado,/ disse certo pintor;/ se pode sem fim continuá-lo,/ primeiro, ao além de outro quadro/que,/ feito a partir de tal forma,/ tem na tela, oculta, uma porta/ que dá a um corredor/ que leva a outra e a muitas outras.?