Número de páginas, muito tempo e pouca leitura

Os leitores provavelmente conhecem a expressão ?com quantos paus se faz uma canoa?. Quando se sabe o tamanho da embarcação, pode-se calcular quanta madeira será necessária para construí-la. Quantos dias têm os meses de abril, junho e setembro? Uma cantiga popular e o calendário resolvem a indagação. Com quantos livros se faz um leitor, isso ninguém sabe. A quantidade é imprevisível. Um livro apenas pode estimular e incentivar um processo sem fim de livros e leituras. Nem toda biblioteca, atualizada e organizada, é capaz por si só de motivar a criança a retirar um livro e lê-lo.

Os números responsáveis pela formação do leitor são uma incógnita ou flutuam de leitor para leitor. Já números na produção de objetos ou na divisão do tempo pedem exatidão. No entanto, a pergunta persiste: quantos livros são necessários para formar um leitor proficiente?

Em que momento um leitor se torna independente e crítico? Ninguém sabe. A relação entre quantidade de livros e qualidade de leitura desafia professores, pais, agentes de leitura e o próprio leitor. Enquanto isso, questões básicas a respeito do nascimento de um leitor continuam sem resposta.

Se interrogamos pessoas, que consideramos leitores proficientes e com bom desempenho na descoberta de sentidos, sobre a quantidade de páginas lidas semanalmente, teremos condições de responder apenas a dúvidas sobre quantidade, mas o mistério da proficiência continuará insondável. Se a resposta for, por exemplo, ?400 páginas semanais?, poderemos repassar a informação a nossos estudantes, e cobrar deles performance igual ou aproximada, para que se tornem leitores? Consideraremos atingido nosso critério de leitura crítica pelo número de páginas lidas?

É óbvio que não.

A formação do leitor passa pela qualidade do texto lido. A quantidade é decorrência. Se lemos esporadicamente, menor intimidade temos com letras, palavras e parágrafos; em decorrência, investe-se mais tempo sobre o livro, mas o volume de páginas lidas é pequeno. É normal que assim seja: a leitura tem um aspecto mecânico a ser dominado para que a produção resulte acelerada após um período de exercícios, como outras atividades mecânicas: bordar, dirigir automóvel, digitar. O mérito não reside na velocidade com que fazemos, mas na eficiência, prazer e competência com que o fazemos. Tornar-se um campeão por devorar uma quantidade impressionante de cachorros-quentes em poucos minutos é diferente da degustação da macarronada da mamma, ou do requintado prato de ostras, saído das mãos de um chef renomado.

A metáfora culinária é proposital: o que o leitor quer significar quando, sorrindo satisfeito, informa que devorou o livro? Esse é um critério de qualidade? Em termos, a resposta pode ser afirmativa. O interesse despertado pelo texto foi suficiente para prender a atenção, o olhar e o imaginário do leitor, até satisfazê-lo.

O que pode determinar esse enlevo é uma estrutura tipicamente contemporânea e intensamente influente: a literatura de entretenimento.

Para realizar uma série de conferências, visita o Brasil o crítico literário, escritor e ex-professor da Universidade de Veneza Alfonso Berardinelli. A respeito de livros que possuem essa força de atração, ele explica: ?Antes, o best-seller era freqüentemente casual, ao passo que agora se trata de livros programados; há uma indústria do best-seller. Cria-se um certo produto literário de acordo com uma fórmula magnética, que tende a se repetir, já que o leitor de best-seller ama a repetição, quer trilhar caminhos seguros.?

Essa repetição de formas, que irá constituir a fórmula, equivale a uma linha de montagem de obras e leitores. A maior parte dos livros de literatura infantil e juvenil é resultado desse mesmo processo de fabricação em série. Fica fácil para as crianças ler grande quantidade de páginas em pouco tempo, pois os textos não oferecem obstáculos e rupturas significativas.

O mais grave, contudo, é que o best-seller ?não amplia os horizontes do leitor, é um livro mata-livros, cria o deserto em torno de si, porque o leitor de best-seller não procura outros autores, não é curioso, espera a saída do próximo best-seller, porque quer o livro-síntese, que lhe permita não ler mais nada e lhe dê a ilusão de ter lido o essencial?, continua Berardinelli.

Concordo com essa avaliação, e pude comprová-la, coincidentemente, poucos dias após a leitura da entrevista de Berardinelli numa das livrarias de nossa cidade. Estava mergulhada em estantes promissoras de pensamentos e escritas inovadoras, quando ouvi um consumidor dirigir-se à balconista para saber da chegada da tradução de mais um Harry Potter. Era um homem maduro que confessou, de maneira a ser ouvido pelos presentes, que já havia lido todos os livros anteriores da série, e chegara até a comprar a biografia da autora, J. K. Rowling. A curiosidade o levou à série, a ficção o impeliu a bisbilhotar a vida alheia. O próximo passo talvez seja em direção aos diluidores do caso Harry Potter, assim como os leitores do Código da Vinci estão comprando, e lendo, as contestações e defesas (até as mais enganosas e fúteis) das posições assumidas pelo best-seller do momento. Haja dinheiro, tempo e horas de leitura para tanta futilidade!

Com quantos livros se faz um leitor proficiente? A resposta irá se estender nas futuras crônicas que ocuparão este espaço. Quantas mais?

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