Marta Morais da Costa
Acredito que os livros têm o poder de nos surpreender com certa freqüência. Um dia desses, vasculhando as estantes da biblioteca da escola (sem uso, nem usuários, porque, segundo os professores, "só tem livro velho"), encontrei um folheto em vias de desmanchar-se ao ser manuseado. Algumas manchas, orelhas no alto das páginas e muitas, muitas linhas sublinhadas, ora a lápis, ora à tinta, ora com caneta marcadora, todas indicavam, como luzes sinalizadoras, a presença e passagem de inúmeros leitores.
Para além das pistas e pegadas deixadas por todas as partes, o título atraía os olhos e o pensamento: "N[o]ve razõe[s] par[a] não l[e]r". O nome do autor, quase ilegível. Os olhos ocos deixados pelas traças tragavam algumas letras. Visíveis com esforço apenas eram identificáveis as letras M-r-o-d-s-a . O nome assim devorado parecia código, pseudônimo. O título, mais legível, era atraente. Cuidadosamente, iniciei a leitura do livreto. Omito trechos ilegíveis, preencho traços das traças e transmito a você, leitor ou leitora, o que pude apreciar nas páginas encontradas na biblioteca desdenhada.
"Nas minhas andanças por um certo país-continente, me deparei com a crença, disseminada entre sua população, de que a leitura para pouco – ou quase nada – serve. Os habitantes, que, diga-se de passagem, expressavam-se numa língua monótona e de parcos recursos, explicavam e enumeravam as razões dessa convicção.
1 – Não ler permite aproveitar melhor o dia. É possível empregar as horas em atividades mais produtivas, como conversar sobre o tempo ou a novela da moda, jogar canastra, ir ao supermercado, lavar vidraças, passar roupa, curtir o trânsito engarrafado e, sobretudo, falar sem remorso ao celular com todos os amigos cadastrados na agenda do aparelho.
2 – Não ler economiza muito dinheiro. O salário pode ser melhor empregado no CD de música rural-pornô, numa ida ao salão de beleza (principalmente para um trato caprichado nos cabelos, a fim de valorizar o exterior da cabeça), na camisa da moda, no sapato com pedrarias, no suco de açaí com um duplo hambúrguer.
3 – Não ler favorece as amizades, porque evita a solidão e o confinamento. Em lugar de ficar sozinho lendo no sofá, fechado em casa, o cara se vê obrigado a sair, visitar as pessoas, trocar frases tatibitates e planejar o melhor modo de evitar o tédio e o psicanalista.
4 – Não ler evita que a pessoa seja rotulada de "gênio" ou "esquisita", pois qualquer um dos dois qualificativos a marginalizam no grupo. Alguns dos habitantes desse País, ao serem entrevistados, juravam ter presenciado cenas de rejeição, causadas pela presença de um leitor praticante numa roda de companheiros não-leitores. Outros davam notícia de que havia entre esses companheiros um pacto de difamação de todo aquele que portasse ou abrisse um livro.
5 – Não ler evita a contaminação pelo pensamento escrito por outros homens, denominados autores. Num tempo em que se exige uma pessoa de atitude, para que ela não seja mais um na multidão, a leitura faz perder o pensamento próprio. Um dos habitantes desse País chegou a afirmar que pior do que não ter uma idéia sobre o mundo, é ter muitas, mas copiadas dos livros.
6 – Não ler melhora a saúde física porque não desgasta os olhos nem causa problemas de retina. Também evita a fraqueza e a anemia, porque a pessoa tem tempo para passear ao sol, carregar objetos mais pesados do que o livro (pedras, cimento, tijolos, por exemplo), mexer-se e caminhar até o carro, em lugar de passar horas numa cadeira, ou rede, ou sofá.
7 – Não ler favorece as escolhas de toda ordem, porque elas se tornam menos numerosas e, portanto, limitam a indecisão. Melhor mesmo é quando os outros orientam a seleção, facilitando e tornando mais rápidas as decisões. Este sétimo item é fundamental em todas as eleições, principalmente quando a orientação dos outros vem acompanhada de algum brinde.
8 – Não ler deixa o indivíduo livre para criar e comportar-se, porque ele não precisa suportar a tradição e a história. O mundo começa com ele, o que possibilita a descoberta e invenção em cada novo dia de objetos e máquinas revolucionários, como a roda e o telefone, o tear e o fogão a gás, o chip e o chope, o relógio e o pára-raio, a lâmpada e a escrita.
9 – Não ler é um grito de liberdade, principalmente quando pais e professores são leitores. Assim, toda vez que perseguem um cara dizendo o quanto é importante ler para conhecer, divertir-se, ser cidadão ou aprender uma profissão de sucesso, o perseguido pode argumentar e mostrar a esses malas que é possível ser bem-sucedido na vida sem ler, como provam os habitantes de certa capital, perdida e isolada no centro do país."
Antes de terminar a leitura daquele folheto-quase-pó, assalta-me uma pergunta que não quer calar: por que apenas nove razões? Por que não dez, completando um decálogo de idéias às avessas? Decálogo que, em lugar de leis, normatiza balelas, razões desarrazoadas?
Será que as páginas amareladas deixam por conta de cada leitor o acréscimo de seu décimo argumento, a razão inconfessável, a causa secreta da profissão de fé no desvalor da leitura?