O maior investimento veio com o primeiro emprego. Separada uma pequena quantia para os ingressos de cinema, todo o mais era convertido em papel impresso. Livros comprados eram livros lidos. O vil metal se convertia em rio mental.
Quanto do que li ficou pelo caminho, soterrado no tempo, submerso nas águas do Letes da escrita. A biblioteca adolescente era o duplo da adolescente, movida pelo desejo da leitura. As dezenas de livros que tive e que perdi, ou descartei. Essa leitura adolescente, que preencheu os dias e alimentou sonhos e ilusões, terá desaparecido com os livros? Absolutamente, não. O gosto daquelas manhãs leitoras reaparece, por vezes, nesta quase noite da leitora adulta. Surpreendo-me atraída por enredo, personagens, sonoridades e metáforas que me construíram como leitora e que compõem o capital intelectual, que hoje acumulo.
Minha biblioteca adolescente era meu espelho adolescente. Moldura em cores alegres, com retratos de ídolos, prensados entre o vidro e a madeira, a imagem embaçada ansiosa por definição e contornos identidários: esse espelho projetava de volta um fundo composto por volumes desejados, curtidos, inebriantes – talvez desprezíveis no estágio de leitura atual.
Revejo volumes encapados de verde papel-tigre, com etiquetas manuscritas, irmanados em rude prateleira, a criar um ambiente de contraste com as prateleiras de meus irmãos, com bolas de gude e brinquedos de corda, com bonecas e bibelôs de porcelana. Comparados, a pequena biblioteca em seu chamariz verdejante, parecia sóbria, imponente.
O tempo amadureceu o verde das capas e dos conteúdos. O processo de maturação foi expulsando aqueles textos despretensiosos e repetitivos, criando espaço para livros com textos mais respeitáveis, valorizados por critérios criados por comunidades leitoras mais abalizadas e preceptivas. Vieram os romances e poemas dos anos dourados do Romantismo, os sisudos e densos realistas e naturalistas. A prateleira começava a arquear sob o peso da tradição. A leitora e sua ainda pequena biblioteca continuavam a se refletir uma à outra. A vida seguia seu curso inexorável, assim como o acervo seguia seu curso sempre transformável.
Houve um tempo em que a biblioteca teve identidade, coerência. Os assuntos se assemelhavam, criando redes complementares e ajustadas. A profissão trouxera o fio que interligava as estantes, agora múltiplas e multicoloridas. Era possível descobrir na organização severa o centro de interesse daquela idade e atividade. O predomínio do qualitativo indicava os critérios de seleção, os descartes do supérfluo, a proibição do mal escrito.
O acúmulo dos anos trouxe a difusão do interesse. Hoje, vigora o pluri, o multi, o poli. Os livros de desencontram em caminhos que se trifurcam: o racional de ontem, o ilusório do princípio, o indefinido de hoje.
Suzy Sperber, ao estudar a biblioteca de Guimarães Rosa, reencontrou nela a origem dos escritos do poeta-inventor. Os livros diziam das fontes, das preocupações, dos estudos dos projetos literários. O mesmo sucedeu com a biblioteca de Mário de Andrade e os muitos estudos que dela se originaram.
A biblioteca preserva as vozes com as quais nosso pensamento e saber conversam interminavelmente. Representa a comunidade que dá suporte e identidade cultural. Com ela dividimos saberes e somamos descobertas. São retratos encadernados da vida interior de seu proprietário. Duplicam em papel a nem sempre confessada, e muitas vezes oculta e silenciosa, vida intelectual. Os livros possuídos convertem-se em proprietários, pois se mostram como documento visível, assinado por seu dono com a tinta invisível de uma história pessoal de leitura.
A curiosidade pela origem da biblioteca particular assemelha-se, portanto, ao caminhar ao encontro de sujeitos leitores de vida enriquecida.