Na livraria

?Será que não tem um volume menos manuseado??, disse a mulher. ?Novamente aquela chata?, pensou o vendedor que, de costas, colocava em ordem alguns volumes, reconhecendo a voz e voltando-se para a mulher franzina a lançar-lhe as palavras num timbre estridente. Abriu um sorriso simpático, apesar do desejo interior de ofender, gritar, agredir, intensificado por uma nuvem de agulhas no cérebro, a denunciar a chegada de intensa enxaqueca. Não podia ofendê-la, correria o risco de ser demitido. Era uma das clientes mais assíduas da livraria. E os tempos não estavam para desemprego… Paciência: buscou povoar o cérebro de pensamentos para expulsar a nuvem. Em vão.

?Você sabe que não gosto de livros que todo mundo que veio aqui abriu, folheou, mexeu. Livro bom tem que ser intocado. Busque outro pra mim no estoque?.

Ah, se ela pudesse não gritar, arregalando os olhos míopes, se pudesse ser mais delicada e menos mandona! Sorriu novamente, pediu que aguardasse, e foi aos fundos da loja. Interiormente pedia aos deuses que houvesse um livro intacto no estoque. Procurou encontrá-lo no meio de milhares de outros. Ainda bem que a aplicação ao trabalho lhe rendera um tanto de faro, outro de sorte e mais um de habilidade. Pronto, o livro novo estava em suas mãos! Bendito volume com embalagem plástica. Intacto! A nuvem também parecia dissipada.

Voltou à loja e não encontrou a freguesa. Lançou um olhar rápido pelas ruas entre as estantes. Ao olhar, um enxame de pontos pretos tomou conta da paisagem. A nuvem voltara, com ela, os olhos em febre. Mesmo com a visão neblinosa distinguiu ao fundo, numa parte mais escura da loja, a mulher agachada a retirar de estante mais baixa outro volume. Apressou-se em encontrá-la e dar a boa nova.

?Meu rapaz (ele não gostava nada, nada daquele tratamento, sabia no entanto que a velha usava umas expressões típicas de um tempo desaparecido), meu rapaz, achei outro volume aqui…muito interessante. É dos antigos. Não sei como esta loja tão moderna ainda guarda um volume desses! Será que por ser velho e estar meio escondido, eu ganho um desconto maior??

Cada vez mais entendia porque, mesmo sendo uma constante compradora de livros, os demais balconistas se escondiam, ou fingiam estar ocupados quando ela entrava na livraria! Suas atitudes fizeram apagar-se da memória mais um conceito sobre leitura: o de que quem lê muito, tem horizontes abertos, e melhor compreensão do mundo. Então, a leitura não curava a chatice?

Estendeu o volume novinho que trouxera do estoque com ar triunfante. A mulher conferiu o estado do livro, segurou-o lado a lado com o que acabara de encontrar, lançou olhares duvidosos e decidiu: ?Só vou levar este mais velho: atende melhor a minha necessidade?, falou secamente. ?Você tem algum livro com receitas que usem aspargos? Vi na televisão uma reportagem e me deu vontade de aprender pratos novos?.

Aspargos? pensou o rapaz. Do cérebro, em resposta veio uma zoeira incômoda. Nunca ouvira falar disso. Nunca comera. Será que era algo parecido com feijão? Com abóbora? Com mandioca? Consultou o arquivo mental: nenhum título apareceu. Convidou a megera a ir com ele até as estantes de culinária. Por sinal, desde que começara a trabalhar na livraria, aquelas estantes não paravam de receber livros novos. E como vendiam! Para homens, mulheres, jovens, velhos. Parece até que os moradores da cidade estavam sofrendo de amnésia coletiva em relação aos ingredientes e modos de fazer alimentos. E precisavam relembrar todos os passos, sob pena de morrer de fome. Morria-se de fome se não houvesse aspargos?

Das estantes começaram a sair volumes e mais volumes. Ele e a mulher, cada um mais apressadamente que o outro, queria ser o primeiro a descobrir a tal obra aspargófila. Brotavam todos os tipos de folhas, frutos, temperos, legumes das páginas dos livros. Aspargos, no entanto, estavam tão acessíveis quanto a pedra filosofal.

Buscou auxílio no computador, com o registro de todos os livros da loja, e das filiais, buscou catálogos. Clamou auxílio dos demais balconistas. Até outros fregueses foram consultados. Enquanto isso, a velha debulhava os volumes em busca da almejada receita.

Diante da inutilidade da busca, depois de voltas do ponteiro do relógio, estavam dando por encerrada a busca, quando surgiu um volume salvador, perdido na estante de jardinagem. Consultando as receitas, a velha começou a resmungar: ?Nesta receita vai mel. Detesto. Nesta outra, glúten: proibido pra mim. Aquela tem pimenta: deus me livre, passo o dia bebendo água, depois fico com retenção de líquido…? Folheava o livro e recusava, por razões as mais estapafúrdias, as receitas. Concluiu que não levaria o volume sacrificial: até achava que aspargos deviam ser muito ruins, bastava ver as fotos dos pratos!

?Meu rapaz, acho que hoje vai só este volumezinho mesmo. Será que o desconto pode ser maior? Afinal, venho sempre aqui. Também porque vocês são tão gentis comigo. Vejo sempre brilhar nos olhos de vocês uma alegria quando chego. Sinto que sou bem vinda. E olhe que sou uma boa leitora de fisionomias, viu??

A maldita enxaqueca piorou, nem nuvem, nem enxame: o mundo ameaçava derrubá-lo, girando sem parar. Foi ao gerente, pediu dispensa. Deixou a mulher no caixa esperando o desconto. Saiu pra rua. No bolso esquerdo do casaco, a leitura do dia: Só tem enxaqueca quem quer.

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