A tolerância da população curitibana com a violência contra a criança e o adolescente está acabando. A prova disso é a média de mais de cinco notificações por dia registrada nos dois últimos anos pela Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco para a Violência. E é justamente a criação de instituições como a Rede de Proteção que vem contribuindo para que esse tipo de crime seja identificado.
Além dos conselhos tutelares e de serviços como o SOS Criança e o Programa Sentinela, o poder público e a sociedade civil vêm se organizando para oferecer ao cidadão novos caminhos para identificar e combater os crimes contra a criança e o adolescente.
Iniciativa da Prefeitura Municipal de Curitiba, a Rede de Proteção é uma ação integrada por várias instituições da área social para proteger crianças e adolescente em situação de risco para a violência. A rede engloba instituições como escolas municipais e estaduais, unidades de saúde, Resgate Social, hospitais e conselhos tutelares, entre outros, que estão capacitados para identificar e notificar casos de violência contra menores de idade. Além de fazer o encaminhamento correto de cada caso, os profissionais filiados à rede ainda têm condições de acompanhar as vítimas e suas famílias para evitar a reincidência.
?Muitas crianças chegavam a hospitais ou escolas com hematomas, ou desnutridas, ou com algum sintoma de violência, mas isso passava despercebido. Agora os profissionais dessas áreas têm condições de reconhecer vítimas e encaminhar os casos ao SOS Criança e ao Conselho Tutelar?, explica a coordenadora municipal da rede, Vera Lídia Oliveira. Mais de 400 entidades estão ligadas à rede, que funciona desde 2000 e também presta serviços de prevenção e orientação.
Capacitação de profissionais e prevenção também estão entre os objetivos do Centro de Combate à Violência (Cecovi), organização não governamental nacional, fundada há 6 anos e atuando em Curitiba desde 2003. Um dos principais trabalhos da organização é orientar profissionais que trabalham com crianças e adolescentes a identificar os casos, como proceder, como trabalhar a vítima e a família. 3,6 mil profissionais já passaram pela capacitação do Cecovi, inclusive os funcionários dos oito conselhos tutelares de Curitiba.
Mas a coordenadora nacional do centro, Maria Leolina Couto Cunha, revela que o carro-chefe da organização é a assistência jurídica. ?Temos dois advogados que fazem todo o encaminhamento e o acompanhamento jurídico dos casos e, se preciso, entramos com ação de guarda ou restrição de visita, para evitar o contato da criança com o agressor?, explica.
Além disso, o Cecovi também realiza trabalhos de prevenção em escolas, igrejas e centros comunitários. Em parcerias com o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e outras organizações internacionais, o centro já tem 18 publicações sobre o tema editadas e prepara, para este ano, uma revista especializada.
Casos são encaminhados à delegacia especializada
Todos os casos identificados e notificados pela Rede de Proteção e pelo Cecovi são encaminhados ao Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítima de Crime (Nucria), delegacia da Polícia Civil criada em 2004 para atender exclusivamente casos de crimes contra crianças e adolescentes cometidos por adultos. A delegada Ana Cláudia Machado lembra que a delegacia é um órgão de competência subsidiária, sendo responsável pela investigação de todos os crimes cometidos por adultos contra menores, exceto homicídios, tipo de crime para o qual há outra delegacia especializada.
Além de investigar as denúncias diretamente recebidas ou encaminhadas por outras instituições, o Nucria também promove ações de prevenção, como a fiscalização em ônibus intermunicipais, para averiguar se o menor está viajando com toda a documentação exigida, e visita a bares e lanchonetes, com o objetivo de coibir a venda de bebidas alcoólicas a menores de 18 anos.
A delegacia também faz trabalhos de orientação em escolas, e operações especiais no litoral, por exemplo. Trabalhos como esses têm tornado o Nucria mais conhecido e, em pouco mais de um ano de existência, o número de denúncias mensais recebidas mais que dobrou, chegando hoje a aproximadamente 75.
A delegada Ana Cláudia destaca o trabalho de uma equipe multidisciplinar nas investigações, para garantir toda a atenção e a sensibilidade que se deve ter ao trabalhar com crianças. ?Nós temos uma sala de brinquedos em que, ?brincando? com a criança, uma psicóloga que também é investigadora consegue detectar se a criança foi vítima de algum tipo de violência. Assim não induzimos ela a nenhuma resposta e evitamos sua revitimização?, esclarece.
Outra novidade para atender os menores vítimas de violência é a criação de um centro de referência, que está sendo implantado na Unidade Municipal de Saúde da Criança, na Avenida Marechal Floriano Peixoto, contando com uma pediatra, uma psquiatra e uma psicóloga, para oferecer todo o suporte à vítima. (RP)
Nucria realizou 653 atendimentos no ano passado
Levantamento interno do Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítima de Crime mostra que a delegacia atendeu 653 casos em 2005. Os crimes mais comuns investigados foram atentado violento ao pudor e lesão corporal.
As entidades que trabalham com crimes contra a criança e o adolescente costumam classificá-los de quatro formas diferentes: violência física (uso da força, de forma intencional, deixando ou não marcas evidentes), psicológica (agressão verbal constante, humilhação, culpabilização, rejeição, indiferença, ameaça ou discriminação), sexual (uso da criança ou do adolescente para a gratificação sexual dos adultos ou de adolescentes mais velhos) e negligência (omissão contínua em relação a saúde, higiene, alimentação, educação, proteção e atenção). Além disso, diferencia-se entre violência doméstica – praticada por pais, parentes ou pessoas próximas à vítima – ou extrafamiliar – praticada por pessoa de fora da convivência da vítima.
Dados da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco para a Violência revelam que mais de 90% dos casos são de violência doméstica. E a mãe é a principal agressora. No entanto, a maioria dos crimes cometidos pelas mães são de negligência, como não propiciar à criança alimentação e condição de saúde adequadas ou mantê-la fora da escola. Já quanto aos crimes de violência física e sexual, o pai passa a ser o principal agressor.
Por isso, a coordenadora do Cecovi, Maria Leolina Couto Cunha, defende a criação de uma política pública para trabalhar a família agressora, já que, por não existir nenhum trabalho nesse sentido, a vítima é, em muitos casos, tirada da guarda de sua família, o que não é bom para nenhuma das partes. (RP)
Vários canais para fazer denúncia
Com os diversos canais à disposição, a garantia do anonimato e a indignação do cidadão perante situações de violência contra crianças e adolescentes, o número de denúncias contra esse tipo de crime tem crescido. ?Os casos sempre ocorreram, mas agora está havendo maior fiscalização e a população está começando a denunciar?, ressalta Vera Lídia Oliveira, coordenadora municipal da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco para a Violência.
A delegada Ana Cláudia Machado, do Nucria, também acredita que a tolerância das pessoas quanto a esse tipo de crime tem diminuído, mas ainda falta muito. ?Sabemos que a cada denúncia que recebemos, cerca de outros 20 crimes deixaram de ser denunciados. As pessoas estão se indignando com a situação, mas ainda estão tendo receio da hora de declarar.?
Para acabar com esse receio e fazer com que o número de denúncias aumente ainda mais, a coordenadora do Centro de Combate à Violência (Cecovi), Maria Leolina Couto Cunha, defende a quebra de alguns mitos. Para ela, conceitos como ?todos os pais amam seus filhos, o que fazem é para o bem deles? ou ?em briga de família ninguém deve se meter? e, principalmente, o conceito de bater como método pedagógico, tem de ser combatidos. ?A violência contra a criança, principalmente a doméstica, é uma questão cultural. E é com essa cultura que temos que acabar.?
Ela também acredita na necessidade de se capacitar continuamente os profissionais que atuam na área. ?A comunidade está denunciando, mas, paralelo a toda essa mobilização, é importante se investir na capacitação dos profissionais que recebem as denúncias, para que o encaminhamento seja bem feito, o denunciante veja que funciona e volte a denunciar, dando credibilidade ao sistema?, lembra. ?Os canais estão aí, uma pessoa que identifique um caso de violência contra crianças pode denunciar por telefone, pelo 156, entrar em contato com o Cecovi, com a Rede de Proteção, ou procurar direto o Nucria. Temos que quebrar esse muro do silêncio?, completa. (RP)