Um secretário-geral das Nações Unidas sofrendo de depressão, literalmente sem voz, ausente de reuniões e envolvido em escândalos. Esse é o roteiro do drama vivido pelo ganense Kofi Annan nos últimos anos de uma década no comando da diplomacia da ONU. Abalado pela decisão dos EUA de invadir o Iraque, seguida pela morte, em Bagdá, em 2003, do enviado especial e amigo pessoal Sérgio Vieira de Mello, e depois por denúncias de corrupção, Annan deu sinais de que abandonaria o cargo.
As revelações são de Fred Eckhart, que por oito anos foi o porta-voz de Annan na ONU e publicou sexta-feira o livro de memórias Kofi Annan sobre o primeiro africano a liderar o órgão. Em entrevista ao Estado, Eckhart revela como o secretário-geral da ONU entrou em rota de colisão com o governo americano por causa do Iraque.
Annan tinha recebido aval da Casa Branca para comandar a organização em substituição ao egípcio Boutros-Boutros Ghali, cujo mandato à frente da ONU foi considerado “desastroso” por Washington. Annan, porém, também acabou sendo alvo de ataques.
“Quem enfrenta os EUA sabe que sofrerá retaliações e foi isso o que ocorreu”, contou Eckhart. Com base em mais de cem entrevistas e na convivência diária com Annan, o ex-porta-voz aponta que o africano ficou preocupado com a divisão criada na comunidade internacional pela política unilateral imposta por George W. Bush.
“Annan viu a Carta da ONU ser rasgada na sua cara”, disse ele em relação à decisão dos americanos de ignorar o Conselho de Segurança, adotar a estratégia de ataques preventivos e rever toda a questão da tortura.
Sua crise pessoal tornou-se ainda mais grave com o atentado contra a sede da ONU em Bagdá – o maior da história da organização -, em que o brasileiro Sérgio Vieira de Mello e outras 22 pessoas morreram. No livro, Eckhart revela que o envio do amigo a Bagdá foi a pedido dos EUA. Annan teria tentado convencer a Casa Branca de que Vieira de Mello já estava “ocupado” demais no cargo de alto comissário da ONU para os Direitos Humanos.
“Vieira de Mello foi convidado diretamente pelos americanos que, com isso, torceram o braço de Annan”, diz Eckhart. O acordo foi que o brasileiro ficaria apenas quatro meses em Bagdá. Para Annan, o dia do atentado à bomba – 19 de agosto de 2003 – foi o pior de seu mandato. Dias depois, quando foi ao Rio de Janeiro para as homenagens ao brasileiro, Annan não queria jantar nem sair do quarto de hotel.
“Muitas pessoas perto dele confirmam que ele ficou deprimido”, disse o ex-assessor. Annan, naqueles meses, perdeu a voz e, nas reuniões, parecia ausente. “Ele foi consultar um médico para cuidar da garganta, mas também procurou ajuda para lidar com o estresse emocional”, contou Eckhart.
Quando Annan finalmente alertou que a guerra do Iraque era ilegal, em uma entrevista à BBC, Eckhart disse ter advertido o secretário-geral de que ele teria problemas. “Ele retrucou: ?É isso o que penso?”, disse Eckhart. O que se seguiu foi uma série de acusações de corrupção contra Annan, a maioria vinda de aliados conservadores do governo Bush.