Era tarde na casa de campo e uma complicada operação de troca de telefonemas e roupas deixava minha prima e sua filha assoberbadas; meus tios desdobrados em servir a todos. Eu vestira as vestes de Ghandi e optara pela não violência.

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Por fim conciliamos tudo, e a jovem mulher, recém saída da adolescência, pegou carona conosco – toda linda. Mais tarde sairíamos sozinhos, eu e minha prima, ávidos por colocar em dia o papo dos tantos meses que ficamos sem nos encontrar.

Numa dessas viagens de carro entre a chácara e o centro, passamos pela lateral de uma vila quase centenária, pérola da arquitetura pontagrossense, construída em 1926 pelo industrial Alberto Thielen, nomeada em homenagem à sua esposa e ocupada por décadas pela Biblioteca Municipal.

Ali debaixo de suas palmeiras, nas tardes frias de minha cidade infantil, perdia-me nos clássicos, lia os Dumas, Jules Verne e Victor Hugo em livros publicados em Portugal nas primeiras décadas do século XX, belissimamente encadernados, parte da coleção doada pelo casal de professores à Biblioteca que se desfazia em poeira e fungos, inadequadamente emprestados a qualquer um. Graças a Deus. Minha mãe reclamava, não entendia como eu podia gostar tanto daqueles livros velhos, cheios daquela ortografia antiga… mas no fundo se enchia de orgulho quando entrava comigo lá e as moças da recepção diziam-lhe que eu era o leitor mais assíduo do lugar. Tanto subi e desci por sua grande escada em cauda de vestido de noiva que, se fechar os olhos, ainda posso sentir suas pedras, já gastas, sob de meus pés.

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Mais de uma década atrás, a Vila Hilda foi alvo de um longo processo de reforma e restauração. A biblioteca que ocupara o casarão, foi transferida para uma casa também enorme, mas sem graça, setentista. Idealizada como herança de um casal de professores à cidade – os professores Bruno e Maria Eney, a Biblioteca perdia, com a mudança, o charme e o aconchego.

Anos depois revi a casa e estranhei a pobreza de espírito que norteara sua ?recuperação?. Uma verdadeira desfiguração modernóide em que caíram muros e fecharam-se os porões do primeiro andar, abrigo de jornais e revistas ancestrais. Transformada em Fundação Cultural, sua visitação pública ficou reduzida a uma pequena ante-sala de onde não pude passar.

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Nesta última viagem, então, olho pro lado e de repente vejo o querido muro da vila, com suas gradinhas artisticamente trançadas em Inglaterra, a mesma escada desgastada, o mesmo jardim. Imagino logo as maçanetas em prata de lei e porcelana pintada, o desenho esmaecido e amarelado pelo aperto de tantas mãos. Meu coração se aperta, perdido entre a verdade de minha visita anterior e ecos da ?Sonata? de Veríssimo, um de seus primeiros e melhores contos, no qual o protagonista volta ao passado de uma casa e sua gente.

Pergunto a meu tio que lugar era aquele e ele fala que é a antiga biblioteca, a Vila Hilda. Conta-me uma longa história que envolve edifício restaurado, na antiga Estação Ferroviária, para onde a biblioteca fora recentemente transferida, mas já não escuto mais nada. Interrompo e conto minha história, falo da visita à casa desfigurada e de minha decepção – mas todos me garantem que tal fato nunca ocorreu. Não sei mais em que acreditar. Mas o coração se aquieta, antevendo uma nova visita a aqueles jardins de minha infância – os mesmos! – ainda que sem o recheio dos livros a ocupar o prédio.

Quando chegamos ao restaurante, o chope desce como um laxante d?alma e a este homem que não sabe mais a que universo pertence, se tomou a pílula vermelha ou a azul… Ponta Grossa me espera, logo volto para lá.

Renato van Wilpe Bach é médico e escritor.