Há 70 anos ajudando a reconstruir vidas

Com 13 anos, Alfredo experimentou bebida alcoólica pela primeira vez, incentivado pelo pai, que todos os dias tomava uma dose antes das refeições. Anos mais tarde, ele já era o "mais forte" do grupo de amigos, pois conseguia tomar diversas doses sem cair. Alfredo já tinha substituído o café da manhã por vodca – ele chegou a tomar de 2 a 3 litros por dia – e, em 1984, foi expulso da empresa onde trabalhava e ocupava um alto cargo na direção. O patrimônio desabou, e junto com ele, quase foi a família. Mas a história que tinha tudo para ter um final trágico – ele tentou o suicídio duas vezes – tomou outro rumo, e hoje Alfredo conseguiu reconstituir sua vida, e continua, com a ajuda de amigos, lutando todos os dias contra a doença do alcoolismo.

História semelhante é a de Amadeu, que, aos 11 anos, foi deixado pela mãe em Curitiba, e acabou indo para as ruas para sobreviver. Por mais de 30 anos, Amadeu teve a bebida como "companhia", companheira essa que quase destruiu sua vida e o tornou um homem duro. "Um certo dia eu falei para a minha mulher que iria em uma reunião, e se não desse certo, eu não voltaria mais para casa. Quando cheguei, percebi que muitas pessoas têm problemas semelhantes e que é possível sair dessa. Eu chorei muito", conta, emocionado.

Para Alfredo e Amadeu, essa mudança só foi possível depois que começaram a freqüentar o Alcoólicos Anônimos (AA), uma irmandade de homens e mulheres que compartilham suas experiências, forças e esperanças a fim de resolver um problema comum: parar de beber. A entidade, que neste ano completa 70 anos de atuação no mundo, é considerada a maior organização de ajuda mútua, e que serviu de base para o surgimento de inúmeras outras entidades. O AA está presente hoje em 200 países, sendo que no Brasil existem 4,5 mil grupos, dos quais 280 no Paraná e 60 em Curitiba.

Assim como Alfredo está superando a doença, milhares de outras pessoas vem conseguindo refazer suas vidas através do AA. "Eles geralmente chegam com medo e insegurança, mas quando percebem que os outros vivem situações iguais, faz com que a pessoa se sinta participante de um grupo de recuperação", afirma o médico psiquiatra especializado em dependência química e presidente da Junta Nacional de Alcoólicos Anônimos do Brasil, Fernando Sielski.

Jovens

Segundo o médico, desde 1967 a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o alcoolismo como uma doença incurável, que pode inclusive ser passada geneticamente para os filhos. "Já se sabe que de 10% a 30% das pessoas que bebem podem se tornar dependentes, mas essa proporção sobe para 50%, se forem filhos de dependentes", comenta Sielski. E, infelizmente, esses números estão se tornando cada vez mais alarmantes, pois as pessoas começam a beber mais cedo. "Lembro que quando comecei a trabalhar na área, há 20 anos, os mais jovens que procuravam ajuda tinham 35 anos. Hoje isso se inverteu. Eles chegam com menos de 20 anos no consultório", cita. Para o médico – que também é autor do livro Filhos que usam drogas – outro grande problema é a polidependência, pois além do álcool – que é considerado uma droga para iniciantes -, eles utilizam outras drogas, como maconha, crack ou ecstasy.

Sielski se diz preocupado com essa situação, pois parece que esse cenário não tem chamado a atenção. "O álcool é o maior problema de saúde pública do País, pois ele é responsável por mais de 100 mil mortes por ano, causadas por diversos fatores, como câncer e acidentes de trânsito", relata.

Atualmente existem três medicamentos para o tratamento do alcoolismo, que bloqueiam os receptores do álcool no cérebro. Eles devem ser administrados durante 12 semanas, porém o médico ressalta que é muito importante a pessoa participar do AA para manter a sobriedade. "Ele tem que ir para o AA para cuidar da dependência", diz o médico, comparando o alcoolismo com outras patologias que necessitam de tratamento por tempo indeterminado, como diabetes ou hipertensão.

 Entidades ensinam familiares a conviver com a doença

Os familiares de alcoólicos também são afetados pela doença do alcoolismo, pois enquanto o doente sofre pela obsessão pela bebida, a família luta para controlar a bebida. E essa luta muitas vezes leva as pessoas mais próximas a ficarem ansiosas, sentirem raiva, alimentarem sentimentos de culpa, esconderem a situação e se tornarem sozinhas. Para dar apoio a essas famílias, é que foi criado, em 1951, o Al-Anon e, dez anos mais tarde, o Alateen, que funcionam nos mesmos moldes do AA e visam atender as pessoas e jovens que convivem com o alcoólatra. "No AA, eles vão para não beber e, no Al-Anon, nós vamos aprender a conviver com os alcoólicos", afirma Maria Tereza, voluntária do grupo. Ela conta que veio de uma família de alcoólatras – o pai e o irmão eram doentes -, e com 17 anos casou com uma pessoa que "bebia socialmente", mas que, com o passar do tempo, o problema foi se agravando. Maria Tereza lembra que, depois do nascimento dos quatro filhos, ela começou a trabalhar fora "e a minha vontade era não voltar mais para casa, para não enfrentar a situação".

Depois de onze anos – Maria Tereza no Al-Anon e o marido no AA – ela pode dizer que tem uma vida completamente nova. "Aprendi que não preciso mais me envergonhar de nada porque ele tem uma doença e está se tratando", comenta. Já o Alateen é voltado para jovens entre 13 e 19 anos, filhos ou amigos de dependentes. As duas entidades mantêm atividades periódicas e trabalham da mesma forma do AA, com a troca de vivências e ajuda mútua.

Livro de jornalista relata importância da ajuda mútua

Rita Ritinha – aprendendo a amar – história real de uma filha de pai alcoólico, da jornalista e escritora Rita Ruschel, aborda a importância dos grupos de ajuda mútua na recuperação do dependente e da família. Rita conviveu até os 40 anos com o pai doente e percebeu que a tendência era sempre se aproximar de pessoas com os mesmos problemas, e que isso a estava deixando doente também, pois se tornara uma co-dependente. "Foi quando um amigo me disse que precisava de ajuda, e eu indaguei por que, se eu não era a doente da família", comenta Rita, que depois dessa conversa foi procurar apoio no Al-Anon.

Rita afirma que se identificou com o grupo, e acabou pesquisando outros grupos anônimos de ajuda – entre os quais, mulheres que amam demais, fumantes anônimos e comedores anônimos -, e percebeu que esse tipo de trabalho é muito importante para a recuperação dos dependentes e de quem convive com eles.

A jornalista lembra que quando começou a escrever o livro foi censurada por algumas pessoas da própria família. "Esse comportamento é bastante típico das pessoas que querem esconder o problema para debaixo do tapete. Por isso, acho que o trabalho dos grupos anônimos é muito interessante e eficiente", avalia. Devido ao alcoolismo do pai, que Rita considera que foi um período de grande sofrimento, ela acabou se sensibilizando e criou uma casa de ajuda para mulheres alcoólicas. "Meu pai infelizmente já faleceu, mas agora esse é o meu propósito de vida", declara.

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