?Vocês têm que tomar cuidado com o que fazem aqui dentro, senão o pessoal chega lá fora dizendo que o índio… é feio?, diz o policial, em tom de quem fala com criança. Antevéspera do natal de 2003, estrada entre os municípios de Iguatemi e Japorã, no extremo sul de Mato Grosso do Sul, a pouco mais de uma dezena de quilômetros da fronteira com o Paraguai.
Os guarani e kaiowá líderes da ocupação da fazenda Agrolak, efetivada na tarde do dia anterior, estão parados, quietos, uns de braços cruzados, outros largados pelo chão, rosto esticado, olhando de baixo os federais estancados bem em frente da porteira, todos bem de pé, espinhas eretas, pernas afastadas, mãos nos cintos, como caubóis. ?Agora, vocês vão nos dar palavra de homem, quer dizer, de índio, de que não entrarão em outras fazendas?, pronuncia, solene, outro dos homens da Lei.
Os avá – homens, na tradução deles, índios, na nossa – assentem com a cabeça. Prosseguem com o nhembotavy, o jogo que consiste em fazer-se de bobo para os que, mesmo bem intencionados, resistem a reconhecer inteligência e perspicácia em quem não é branco. O mal-entendido nem parece desapreço.
Na conversa à noite, na lanchonete em Iguatemi, os policiais demonstram boa vontade para conhecer mais esses estrangeiros, fazem perguntas ao antropólogo sobre as reivindicações deles, a história da região. Deixam claro o tempo todo sua condição de intermediários da Justiça: ?A partir do momento em que o juiz ordenar, nós temos que cumprir a ordem de reintegração de posse. O ideal seria que eles voltassem para a estrada?.
Longe disso. Desde essa conversa até a edição desta reportagem, os guarani já ocuparam, invadiram ou retomaram, a depender do ponto de vista, oito fazendas vizinhas aos 1648 hectares da reserva de Porto Lindo. Eles têm pleno conhecimento do conteúdo do relatório preparado em 2002 pelos antropólogos Fábio Mura e Rubem Thomaz Almeida a pedido da Funai. Sabem que a Justiça pode ter dúvidas, mas a ciência já endossou aquilo de que todos os seus representantes mais velhos têm certeza.
Os nomes inventados pelos brancos para mais de uma dezena de frágeis cercados de arame em torno de plantações de soja e pastos para o gado não valem: por ali, até onde o olho alcança, mais de 7,8 mil hectares entre o córrego Jakarey e o rio Iguatemi, é a Yvy Katu (terra boa, em guarani), tekoha (área de ocupação tradicional) dos guarani.
Nas paredes das construções da sede da Agrolak, é o que se vê repetido dezenas de vezes, como se para apagar o passado recente e inscrever em definitivo a sua própria versão da realidade e da história: ?Aldeia Yvy Katu?. Há mais jogos que os guarani conhecem. Como o jogo do espelho, o mesmo que se joga na política e na guerra. Consiste em parecer aquilo que o outro quer ver para conseguir ser visto da forma mais conveniente no momento.
Quando os brancos chegaram à região, no início do século passado, os guarani se fizeram de caboclos para, em troca de novidades como o sal e o charque, poder trabalhar na extração da erva-mate nativa, nas então densas florestas da região: vestiram alguma roupa e deixaram de se pintar, cantar, dançar e rezar em público.
Hoje, para conseguir o respeito que lhes garanta o direito reservado ao índio pela Constituição de 1988 e coibir pelo medo os possíveis ataques dos jagunços em revide às ocupações, eles têm de se parecer com os selvagens em cuja existência os brancos são acostumados a acreditar desde crianças. É preciso pintar-se para a guerra, com urucum, carvão e jenipapo, além de improvisar arcos e flechas e ornar-se com penas, ainda que de galinha, pato, ou mesmo recortadas em papelão.
Para garantir o anonimato que lhes permita voltar a circular pelas ruas e lojas das pequenas cidades da região em tempos vindouros de paz, é preciso esconder o rosto, seja com máscaras de carnaval ou camisetas ao estilo dos adolescentes traficantes dos morros do Rio que se vêem na TV. Nomes? Só em guarani – os índios têm sempre um outro em português, para o uso no dia-a-dia. Ao que lhes é mais caro, os brancos da região pouco atentam: seus maracás, fonte de comunicação com o sagrado, e os seus bastões rituais yvyrapará.
Os funcionários da Agrolak expulsos pelos índios perambulavam pelas ruas da cidade de Iguatemi na noite seguinte à ocupação. Disseram ter prestado queixa na polícia pelo espancamento a que os índios os teriam submetido. Embora afirmassem ter passado por exame, não exibiram nenhuma marca da suposta surra.
Um deles acusava o furto de R$ 100 de cima da geladeira, na casa que ocupava na fazenda. Outro se dizia preocupado com os móveis, eletrodomésticos e tralhas de cavalo que mantinha por lá. Todos saíram apenas com as roupas do corpo da agora Yvy Katu e iam dormir na casa de conhecidos pela cidade.
Contam que o susto foi grande com a chegada daqueles cavaleiros encapuzados, no fim da tarde, quando eles ainda terminavam a jornada de trabalho. ?Agora vocês vão lá pro pátio da fazenda, cantar e dançar com a gente?, lembram-se de ter ouvido dos visitantes, que, acusam, mantêm escondidas suas pistolas e espingardas.
Recepção sagrada
Acompanhado pelos antropólogos Fábio e Alexandra Mura, a reportagem da Agência Brasil foi recebida pelos guarani em Yvy Katu na tarde do dia anterior. Uma dezena de cavaleiros guaranis acompanhou nosso automóvel até o pátio da fazenda.
Formados em retângulo, mais de quinhentos homens, mulheres e crianças guarani nos cercaram enquanto cantavam seus jeroky – cantos sagrados – puxados por mais de uma dezena de casais de xamãs e seus assistentes, batendo maracás – espécie de chocalho com cabo, feito de cabaças – e os takuapu – grandes bambus ocos, que produzem um som surdo ao se chocar com o chão. Alguém se aproximou para nos marcar os rostos com urucum e, em seguida, fomos convidados a explicar a todos, em assembléia, o que tínhamos ido fazer ali.
Fábio Mura já presenciou outras ocupações, mas esta o impressiona especialmente: ?Nunca tinha visto organização assim. Aqui em volta há muitas áreas solidárias ao povo de Porto Lindo. E, como a reserva é aqui bem próxima, eles vão poder manter essa mobilização por muito tempo.? Argentino de nascença, italiano por criação, brasileiro por opção, ele é guarani por batismo – uma cerimônia que esses índios costumam oferecer como honraria aos pesquisadores e autoridades com quem consolidam amizade.
Depois de concluir a graduação em Antropologia na Itália, Mura visitou os guarani de Mato Grosso do Sul que eram atendidos pelo PKN, o Projeto Kaiowá Nhandeva. Com financiamento de ONGs européias, trata-se de uma iniciativa não governamental de apoio ao desenvolvimento local desses índios, dirigida entre fins dos anos 70 e início dos 90 por outro antropólogo, hoje seu parceiro, Rubem Thomaz Almeida. O PKN foi também um dos berços da articulação política entre os líderes locais dos guarani e kaiowá.
Corriam tempos de ditadura, quando a mobilização de entidades como o Conselho Indigenista Missionário ainda engatinhava. E foi numa reunião do PKN na área de Pirajuí para tratar de roças comunitárias em 1978 que Pancho Romero, guarani que residia numa área conhecida como Paraguassu, pediu a palavra para denunciar que as famílias de seu tekoha vinham sendo ameaçadas de expulsão por um fazendeiro branco. As lideranças indígenas perceberam que o problema não era isolado, e as reuniões para tratar do tema se multiplicaram, até desembocar em verdadeiras batalhas durante os anos 80 e 90.
Mura reside atualmente em Dourados e dá assessoria à Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. Um de seus feitos mais recentes foi o de orientar a primeira monografia de conclusão do curso de pedagogia feita por um kaiowá ali, Tonico Benitez. Junto com Almeida, dedica-se também a ministrar palestras e cursos sobre antropologia e a cultura guarani e kaiowá para autoridades envolvidas diretamente com a questão, como juízes, promotores, policiais e professores. Apesar de ser o segundo maior estado em população indígena do país, com cerca de 45 mil pessoas, atrás apenas do Amazonas, o MS não tem até hoje o ensino regular de antropologia.
Entre a pressa e a paciência
Na fazenda, depois de Mura, é a vez de as lideranças falarem na assembléia improvisada. Os índios dizem ter pressa, criticam a Justiça branca e avisam: ?Se vierem, estamos prontos para morrer por esta terra?. Em seguida, é a vez de os representantes da Funai darem satisfação sobre a demora na demarcação da área. ?Vocês vão ter que ter paciência.?
A ocupação dos guarani de Porto Lindo é a primeira que esses índios promovem desde a morte do líder kaiowá Marcos Verón em 13 de janeiro passado, no município de Juti, no tekoha Takuara, ou fazenda Brasília do Sul. Em Yvy Katu, os guarani do local contam com o auxílio de grupos vindos de todas as áreas da região, até mesmo dos guarani e kaiowá do Paraguai. As estimativas são de dois mil a três mil índios envolvidos na ação.
O objetivo dos guarani é apressar o processo de demarcação da área – na verdade, a ampliação da reserva de Porto Lindo, concedida aos guarani em 1928 pelo então Serviço de Proteção ao Índio, o SPI, e hoje superlotada por 2 mil pessoas. O relatório de identificação da terra ainda está em trâmite na Funai em Brasília, depois de ter sido devolvido aos especialistas para ajustes a normas exigidas pela legislação.
Na melhor das hipóteses, a demarcação não sai antes do meio do ano – sem boa vontade, pode se arrastar por anos, como acontece com as áreas de Panambizinho e Cerro Marangatu. Segundo explica Alceu Cotia, coordenador de Antropologia da Funai, depois da publicação do resumo no Diário Oficial, os fazendeiros têm 90 dias para contestar os dados apresentados e, caso isso aconteça, a fundação tem outros dois meses para uma réplica.
Só depois disso tudo é que o processo chega ao conhecimento do presidente da fundação e, em seguida, é enviado para a apreciação do ministro da Justiça. Mesmo assim, publicado o decreto de homologação da área, teoricamente ainda se deve aguardar o pagamento pelas benfeitorias na área para os fazendeiros e só então os índios podem ocupar suas terras.
Apesar disso tudo, nos últimos anos, a pressão dos guarani tenha feito com que eles já obtivessem autorização endossada pelo Ministério Público Federal para ocupar terras antes mesmo das homologações. Em Yvy Katu, os índios terão de sustentar sua mobilização para a luta por muito tempo ainda, antes que o Estado brasileiro resolva o conflito que ele mesmo ajudou a criar ao instalar colonos brancos por ali. Em todo o Centro do Mundo, como a mitologia kaiowá e guarani denomina aquela região, ainda há diversos focos de conflito prontos a explodir.