Galeano: união para enfrentar países ricos

Montevidéu

(AG) – Nem tudo está perdido. A vida ainda vale a pena ser vivida. Sentado num café do centro de Montevidéu, o consagrado escritor uruguaio Eduardo Galeano reflete sobre o que acontece no mundo e afirma, otimista: “Estamos começando a sentir um movimento, algo está se mexendo debaixo da terra. Não sabemos bem para onde vamos, mas algo novo está nascendo”. Em entrevista, Galeano defendeu a união dos países latino-americanos como única maneira de enfrentar o “veto” imperial, criticou o poder vertical de Fidel Castro em Cuba e falou da necessidade de criação de um modelo capaz de satisfazer duas necessidades humanas básicas: respirar e comer.

A chegada ao poder de presidentes como Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, e Néstor Kirchner, na Argentina, provocou grandes expectativas. Mas, nos dois países, a situação social continua sendo gravíssima. Existem motivos para continuar tendo esperanças?

EDUARDO GALEANO: Na hora de falar sobre Lula, ou sobre qualquer governo latino-americano, temos de levar em consideração o que eu costumo chamar de impotência da solidão. Vivemos numa região do mundo que foi abandonada e fraturada em mil pedaços. Ignoramos e desprezamos nossos vizinhos. O relacionamento entre os países latino-americanos está contaminado por antigos rancores. Eles devem unir-se para resolver algumas urgências compartilhadas, como a defesa dos preços num mercado internacional no qual os países ricos pregam a liberalização comercial sem praticá-la. Também deveríamos nos unir para enfrentar juntos os credores externos, pois devem existir soluções comuns para o problema da dívida externa. Separados não teremos destino.

A impotência da solidão impede o crescimento dos países latino-americanos?

GALEANO: Não se trata de uma desculpa mágica para absolver as incoerências e contradições de alguns governos. Às vezes penso que aquela velha piada dizendo que “o poder é como um violino, porque se pega com a esquerda mas se toca com a direita” reflete a situação de nossos países (risos). Mas existe uma série de reformas fundamentais para dar dignidade a estas terras humilhadas e para terminar com o desamparo em que vivemos. Elas só serão possíveis a partir de uma frente comum, porque sempre nos encontramos com o veto imperial que condena os países ao naufrágio. Neste sentido me parece muito importante a ação do governo Lula para recriar, após décadas, a união entre os países menos desenvolvidos na Organização Mundial de Comércio (OMC), e para reforçar o Mercosul.

A América Latina está em crise?

GALEANO: É evidente o esgotamento de um sistema cansado, que deve ser modificado porque está condenado à morte. Não estamos falando do capitalismo que agoniza e será substituído por um socialismo que dará alegria a todos os latino-americanos. A realidade indica que o modelo de desenvolvimento capitalista aplicado na América Latina não funcionou e hoje está liquidado.

Sabemos para onde vamos?

GALEANO: Não, mas a verdade é que temos de inventar um novo modelo, que pelo menos nos permita respirar e comer. Recuperar a dignidade perdida e proporcionar um modelo de bem-estar material. O atual sistema fracassa pelo lado da dignidade e também pelo lado da necessidade. Algo deve morrer para que outra alternativa possa nascer. Certa vez Tabaré Vázquez (líder esquerdista uruguaio com grande chances de vencer as eleições presidenciais em 2004), que é oncologista, explicou que as células do câncer são as que se negam a morrer. Ou seja, por negar-se a morrer, matam e se suicidam. Me parece uma boa metáfora da vida humana, porque todos temos dificuldades em aceitar a renovação da vida. As coisas devem morrer para que outras possam nascer, e isso vale também para os sistemas políticos. Nada é eterno. Estamos começando a sentir um movimento. Não sabemos bem para onde vamos, mas algo novo está nascendo.

No caso de Cuba, por exemplo, também existe um modelo que fracassou?

GALEANO: Cuba é o drama da solidão. Os cubanos fizeram o que puderam, não o que queriam. Uma coisa, são os ideais da revolução e outra, bem diferente, o que a revolução conseguiu realizar. Temos de reconhecer conquistas importantes mas, também, deformações que são conseqüência do isolamento.Trata-se de um país no qual o Estado resolve tudo e, às vezes, para cada solução cria um problema. Este modelo implica a aceitação de uma concepção do socialismo que, a meu ver, está equivocada. A onipotência do Estado não deve ser a resposta à onipotência do mercado.

Presidentes como Fidel Castro e Hugo Chávez estão se transformando em tiranos?

GALEANO: Não, a liberdade que existe na Venezuela é assombrosa. Os jornais dizem o que pensam, os grandes meios de comunicação são opositores do governo. Com todas as suas contradições e limitações, suas características populistas, às vezes demagógicas, considero que Chávez é um homem que tem boas intenções e pretende transformar um país de poucos num país de todos.

Qual sua opinião sobre Fidel Castro?

GALEANO: Fidel também tem boas intenções e, numa situação de bloqueio e trágica solidão, conseguiu alguns milagres. Claro, dentro de uma estrutura vertical de poder, que eu não implementaria porque não sou monárquico. Nem em nome dos direitos hereditários dos reis, nem em nome do socialismo. Mas graças à Revolução Cubana, encarnada neste símbolo da dignidade nacional que é Fidel, Cuba passou de colônia a pátria.

Quando o governo cubano ordenou a execução de três dissidentes, em setembro passado, o senhor disse que Cuba dói…

GALEANO:

Cuba dói porque dói que sejam assassinadas pessoas em nome do socialismo, da revolução, da soberania. O melhor que poderia ter ocorrido, do ponto de vista da Revolução Cubana, era o governo ter libertado estas pessoas, revelando que haviam sido remuneradas pela embaixada americana. Dizer qual era a vaca que lhes dava o leite. Isso teria sido suficiente para manchar sua imagem no país. A prisão, o martírio, pelo contrário, lhes dá prestígio. A ação do governo indica certa fraqueza de um regime que não tem certeza sobre sua própria diversidade. Deve haver multiplicidade de vozes, de idéias. Mas isso é incompatível com um sistema de propriedade estatal única, que confunde unidade com unanimidade. E toda unanimidade é burra, como dizia Nelson Rodrigues.

A onda de protestos sociais que provocou a renúncia do ex-presidente Gonzalo Sánchez de Losada, na Bolívia, é sinal de que algumas coisas estão mudando no continente?

GALEANO:

O que ocorreu na Bolívia, indica que o país tem memória. O povo não esquece, e lembra que teve a principal fonte de prata e de estanho do planeta e hoje não tem nada. Do estanho restaram viúvas. Hoje os bolivianos defendem a propriedade do gás. A realidade é assombrosa. Quando pensamos que está morta, na verdade está dormindo. Até os mais pessimistas devem reconhecer que a realidade continua nos surpreendendo. Às vezes ela bate na nossa porta e nos diz: não sou tão sem graça, tão imbecil.

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