Faces de uma leitura de qualidade

Para argumentar a respeito do tema a que me propus, ressalto que, ao proceder ao levantamento das dificuldades de leitura de alunos, seja no Ensino Médio seja no Ensino Superior de Letras e, por extensão, dos professores que eles se tornarão, discuto alguns procedimentos que poderiam alterar o atual quadro de leitura mínima a que o Brasil está submetido.

O fato é que faltam leitores. E sem leitores, livros são apenas objetos, não têm vida.

Diante desses números, vale indagar se a instituição universitária, em especial o curso de Letras, formador de professores direcionados para o trabalho com a leitura, tem condições de criar e/ou incrementar a necessidade de ler nos vários estratos sociais e nos cidadãos de um modo geral.

A prática cotidiana tem demonstrado que o profissional de Letras, apesar do currículo, a metodologia e a duração do curso, despede-se da universidade com uma bagagem heterogênea e lacunar. Com ela, deve desembarcar no Ensino Médio e desenvolver um trabalho eficiente. Prensado entre uma formação deficiente e um cotidiano profissional desgastante, e pouco recompensador em termos de reconhecimento social e de tranqüilidade econômica, o profissional de Letras se transforma facilmente em dependente de livros didáticos e apostilas, que lhe trazem o sossego do já organizado e já dito.

Em sua formação universitária pode ter transitado pelos meandros da história e da teoria literária com suas diversas correntes e suas informações históricas rotinizadas. Leu e/ou trabalhou com obras canônicas; acompanhou análises estupendas e empolgantes de poemas e narrativas; ouviu e fez citações dos teóricos da moda; freqüentou bibliotecas e livrarias; leu e escreveu páginas de texto sobre literatura; conviveu com personagens e escritores dos mais elogiados das diversas literaturas; acreditou estar suficientemente forrado de conhecimentos para atuar com desenvoltura numa sala de aula com quarenta ou mais adolescentes.

Enganou-se, porém.

Os alunos parecem pertencer a outra galáxia, que não atingiu – ou já ultrapassou? – a era do livro e do texto literário. Na universidade, não alertaram os novos profissionais para a necessidade de seduzir, adaptar, nadar contra a maré. Os adolescentes nem de longe se parecem aos colegas de classe ou ao adolescente que um dia esse professor foi. A literatura para eles está tão próxima quanto Marte. Boa parte deles mal conseguiu chegar à estação terráquea do poema romântico, das Sabrinas e dos quadrinhos. Não que esses textos não tenham seus encantos, mas fica difícil ao professor, que esteve durante anos sob o domínio dos autores canônicos e de valores estéticos, deslocar seu aprendizado e olhar a realidade com olhos mais complacentes.

Dessa luta entre diferentes textos poderá, entretanto, sair uma metodologia de leitura produtiva. Se a leitura, como defendem Glória Pondé e Eliana Yunes, é "uma porta de comunicação com o mundo", tem, como toda porta, o lado de entrada e o de saída. E é a noção de trânsito que plenifica o sentido da porta. Por isso, o professor-formador-de-leitores necessita conviver com o universo de leituras presenteadas pela realidade, conhecê-lo e dele extrair as iscas com as quais irá pescar seu leitor crítico.

Entendendo a leitura como a decifração e atribuição de sentidos aos textos da realidade, num enfoque semiótico, o professor não pode desprezar textos visuais e auditivos que compõem indissoluvelmente o cotidiano dos alunos: o cinema, a música, a televisão e o computador, por exemplo, não são veículos/produtos passageiros. Instalaram-se em nossa vida e nela ocupam um espaço/tempo muito maior do que a leitura de textos escritos e de livros. Faz parte de sua gênese servirem à sociedade capitalista de que se sustentam. Como tal, sua linguagem e mensagens estão coladas aos interesses de classe e de lucro. Em sua agressividade, ficam por demais expostas; cientes de sua força, crêem-se imbatíveis. É por causa desta superioridade que, paradoxalmente, se enfraquecem. A todos os valores propagandeados correspondem seus contrários, numa dinâmica dialética que permite sempre a intromissão de valores antagônicos, com os quais acabam por se confrontar e nem sempre conseguem derrotar. As fissuras da ideologia dominante permitem a atuação do leitor crítico, professor ou aluno.

A qualidade estética da telenovela brasileira é indiscutível. A interpretação de seus atores influencia a representação dos palcos e as atividades de dramatização na escola. As intrigas e situações povoam o imaginário coletivo. A telenovela é, além de uma "fábrica de sonhos", o forno eletrônico a produzir incessantemente modas, comportamentos e expressões lingüísticos tão intensos quanto passageiros.

A imprensa escrita cativa os leitores com um sistema veloz de produção e multiplicação de notícias e assuntos de interesse de cada um. A variedade de publicações periódicas sobre informática, automóveis, casa e fogão, moda, beleza, saúde, esoterismo e o que mais a imaginação humana possa criar enfeita as gôndolas de revistarias, invade os domicílios, preenche as horas de leitura.

O cinema, antes arte coletiva, domesticou-se. De classe A a Z, as fitas em vídeo e em DVD fizeram aliança com férias, pipocas, madrugadas e bem-estar doméstico. O cinema ocupa honroso lugar nos indicadores econômicos e nos definidores do prazer e do imaginário. A acessibilidade prática e a acessibilidade de compreensão se unem para dar ao cinema em casa uma função semelhante à dos folhetins lidos durante os saraus domésticos no século passado, que não impediram, contudo, a criação de obras-primas da literatura. Assim, não fica eliminada a leitura – de vez que um filme é também um texto – mas permite o trabalho de correspondências e comparativismo que a escola, por vezes temerosa, esquece de fazer.

Nota: Continua na próxima semana.

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