São Paulo – O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) considera ético limitar ou suspender procedimentos que prolonguem a vida do doente incurável em fase terminal. É o que diz sua nova resolução, que ainda não entrou em vigor. A medida, porém, não tem força de lei e não isenta o médico de uma ação penal por eutanásia, segundo advogados criminalistas. A norma do conselho, ainda não publicada, foi colocada para consulta pública no site do Cremesp. Para que possa vigorar, deve ser submetida à plenária do órgão, que será realizada no início do próximo mês.
A decisão médica de suspender os procedimentos que mantêm vivo o doente, como a respiração artificial, de acordo com a resolução, deverá respeitar a vontade do paciente ou, na sua impossibilidade, a do seu representante legal.
Também é prevista pela nova regra que o doente ou sua família sejam informados sobre as conseqüências da suspensão ou da continuidade dos procedimentos e tratamentos que permitem o prolongamento da vida do paciente. A decisão deve ser registrada no prontuário médico do doente.
Já a eutanásia ativa – que ocorre quando o médico provoca a morte do paciente, pela administração de medicação, por exemplo – não é tratada pela resolução do Cremesp.
A resolução elaborada pelo Cremesp fere a legislação penal, afirma o advogado criminalista José Luís Oliveira Lima: ?Apesar de na prática médica [a eutanásia] já existir, essa resolução não isenta o médico ou o familiar que autorizar a suspensão do tratamento de responder a uma ação penal por eutanásia?, disse Lima.
Sem respaldo legal
?A eutanásia não é autorizada por lei. A resolução não tem respaldo legal?, garante a advogada Márcia Regina Machado Melaré, vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP). ?Pessoalmente, fico feliz com essa medida do Cremesp porque compartilha a idéia de que a vida tem de ser digna até o fim. O tratamento fútil é indigno?, disse Márcia.
Para o responsável pela resolução e médico Reinaldo Ayer de Oliveira, a meta é enfrentar um dos principais dilemas éticos vividos pela profissão: ou seja, como um paciente terminal deve ser tratado.
?Não nos cabe mudar a lei. Mas podemos dizer ao médico que determinado comportamento não é considerado antiético?, disse.
A consulta pública – a primeira do gênero já feita pelo Cremesp – para Oliveira, será o termômetro para saber o que a sociedade pensa a respeito dessa decisão do conselho.
A norma do Cremesp também considera ético que o médico suspenda todos os procedimentos que mantenham o funcionamento de órgãos vitais de um doente com morte encefálica que não seja doador de órgãos. Atualmente, a legislação só permite essa atitude em casos de pacientes doadores de órgãos.
?Hoje, o médico tem medo de aceitar que ali existe uma pessoa morta. Isso leva muitas pessoas a viverem em estado vegetativo.?
Qualquer que seja a decisão do paciente ou da família, segundo o conselheiro do Cremesp, o doente deverá continuar recebendo todos os cuidados necessários para aliviar o seu sofrimento. ?O médico não vai abandonar o paciente.?
Oliveira informa que assim que a resolução for publicada,o Cremesp vai lançar um manual sobre os cuidados paliativos e as normas que as clínicas que já desenvolvem esse tipo de trabalho devem seguir.
A presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, a médica Maria Goretti Maciel, a resolução do Cremesp deveria conter mais detalhes como a definição do que é considerado um estágio terminal e os métodos de sedação indicados para os pacientes que estejam nessa situação.
?São conhecidos na área médica os coquetéis de sedativos que dopam o paciente. O M1, por exemplo, abrevia a vida do doente, tirando-lhe a oportunidade de viver seus últimos dias consciente, ao lado da família?, afirma.
Já para a pesquisadora Maria Júlia Kovács, do Laboratório de Estudos sobre a Morte, do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), a resolução do Cremesp é bem-vinda: ?A medida poderá evitar que certos procedimentos adotados na UTI continuem sendo verdadeiras torturas para o paciente terminal.?
Terri Schiavo
O caso da norte-americana Terri Schiavo causou comoção e dividiu opiniões até mesmo em sua família. Ela morreu em março último, após viver 14 anos em estado vegetativo. Seu marido, Michael Schiavo, contra a vontade dos pais dela, Bob e Mary Schindler, obteve autorização na Justiça para a retirada dos tubos que a alimentavam e a mantinham viva. Quase duas semanas após a medida ser colocada em prática, Terri morreu. Ela tinha 41 anos.
No Código Penal, crime de homicídio
Sâmar Razzak
Segundo o advogado curitibano Dálio Zippin, membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a resolução do Cremesp trata da avaliação ética e disciplinar da questão da eutanásia sob o ponto de vista do órgão de classe dos médicos. ?No entanto, existe o âmbito penal desta atitude e pelo Código Penal, no artigo 121, a eutanásia é um crime de homicídio?, disse.
O jurista afirmou que a não adoção de determinadas práticas médicas para não prolongar o sofrimento de pacientes pode ser visto, sob o aspecto penal, que o médico está cometendo um crime por omissão. ?A resolução do Cremesp diz que, caso o médico adote tal prática, não estará cometendo infração disciplinar. Mas isso não se estende ao código penal, já que o CRM não pode legislar sobre o código?, explicou.
Para o presidente do CRM no Paraná, Hélcio Bertolozzi Soares, a resolução publicada pelo Cremesp não traz nenhuma novidade àquilo pregado pelo Códico de Ética dos médicos. ?Não temos nenhuma resolução semelhante no CRM do Paraná porque já existe o amparo legal e ético para atender estas determinações de procedimento?, disse.
De acordo com Soares, a resolução publicada ontem trata sobre a ortotanasia – que significa atender às condições de evolução das doenças terminais a fim de dar dignidade, diminuir a dor e proporcionar uma morte digna aos pacientes. ?É o oposto da distanásia – que significa prolongar com medidas paliativas o sofrimento de doentes que não têm possibilidade de continuar vivendo. O que acaba acontecendo nestes casos é manter um paciente com vida vegetativa, prolongando o sofrimento dele e dos familiares.? Soares diz que a adoção da ortotanasia não tem nada relacionado à eutanásia – que é quando o médico, provoca a morte do paciente, pela administração de medicação, por exemplo. Ele disse que o Conselho de Medicina do Brasil repudia a adoção desta prática.
?Cada paciente deve ser visto de forma única pelo seu médico que precisa discutir com familiares antes de tomar a decisão. Não é uma conduta fácil de ser adotada e por isso precisa ser bem analisada?, afirmou.