Estado pode proibir castigo em crianças?

Não é algo simples de se fazer. Uma lei que vem para quebrar um conceito ou um projeto que levanta novas discussões sobre velhas concepções sempre trazem consigo muita polêmica e também dúvidas. O homem foi proibido de castigar sua mulher. Nas escolas, as palmatórias foram abolidas. Os senhores não podem castigar os serviçais. Mesmo depois dessas quebras, quando se pensava que não seria mais possível progredir e educar sem utilizar a força, provou-se o contrário. Agora, continuando a história da civilização, por que não fazer com que os pais eduquem seus filhos de outra forma, proibindo os castigos físicos? Muito além de positivo ou negativo, a discussão é, então, como educar.

O recente Projeto de Lei n.º 2.654/2003, contra os castigos físicos infantis, é uma proposta da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS). O projeto já recebeu parecer favorável em três comissões da Câmara – de Constituição e Justiça e Cidadania; de Educação e Cultura; e de Seguridade Social e Família. No entanto, a sociedade brasileira ainda quer discutir mais o assunto. "De um lado, na cultura brasileira, temos uma vertente européia que educa na base do castigo. De outro, os índios brasileiros, que nunca se utilizaram da violência para isso. O que estamos fazendo é igualando, quanto aos castigos físicos, os direitos das crianças aos maiores de 18 anos, que não podem, por lei, serem submetidos a alguma forma de castigo físico", explica a deputada.

Segundo Maria do Rosário, o atual Código Civil Brasileiro proíbe apenas o castigo imoderado, ou seja, ainda deixa aberta a possibilidade do uso de castigos moderados para que a ordem familiar se estabeleça. Há quem diga que, desta forma, o Estado estaria, cada vez mais, pretendendo interferir na família. A deputada tem uma resposta para esse argumento: "O Estado já se intrometeu quando fez uma legislação que abre as portas para os castigos físicos. O que estou propondo é que a unidade familiar regule isso, mas que o Estado certamente diga não", rebate.

Violência?

O que muitos pais não admitem é que um simples "corretivo" seja relacionado ao tema "violência contra crianças". No entanto, muitos profissionais reafirmam que essa relação é coerente. "Começa com uma simples palmada e sempre passa para uma violência maior. Nós atendemos esse tipo de caso. A violência intrafamiliar é uma questão cultural", admite Angeline Olivetti Grube, vice-presidente da regional Matriz do Conselho Tutelar de Curitiba. Ela considera o projeto de lei proposto como mais um instrumento efetivo contra esse tipo de violência.

A advogada Maria Leolina, da ONG Centro de Combate à Violência Infantil (Cecovi), há 15 anos trabalha com o tema "violência familiar". Ela afirma que, em Curitiba, são muitos os casos em que de uma simples palmada chega-se ao exagero. "O problema da palmada é que a violência doméstica é gradual. Nunca uma criança é morta de uma vez. Ela vai sendo surrada e os castigos corporais vão aumentando de nível", afirma a advogada. Para ela, a lei não seria o bastante. "Se houver uma lei que proíba o castigo corporal, ajudaria, mas não resolveria. O que vai resolver é o trabalho de dialogar com a sociedade e com os pais. As crianças precisam de regras e limites, mas estes poderiam ser feitos de outra forma, que depende da postura dos pais", explica.

Crianças

A pediatra Lucy de Miranda concorda que não é pela punição física que se educa. Porém, ela reconhece que são poucos os que sabem disso e que a falta de preparação dos pais é um fator que os levam a descontar nos filhos. "Os primeiros desvios de conduta começam já aos sete ou dez meses. Quando a criança começa a mexer nas coisas, os pais dão uma palmada para dizer que não. Dificilmente vai ficar nisso e, aos dez anos, a criança já é espancada. Como vou dizer ao meu filho que não bata em outras crianças se eu bato?", questiona Lucy.

Para a pediatra, a lei sozinha não terá muito efeito. É preciso que venha junto com uma reeducação. "Com certeza a lei vai assustar muitos pais, mas junto com a lei, em primeiro lugar, deve vir o bom senso de que seria um avanço para nossa civilização brasileira. Acho que os pais deveriam reavaliar seus conceitos. A lei só quer mostrar que é errado bater em uma criança", considera Lucy.

Números da violência doméstica assustam

A Rede de Proteção à Criança é um órgão ligado à Secretaria Municipal de Saúde que lida diretamente com o atendimento aos menores. Segundo a assistente social e membro da coordenação da rede, Rossana Aronson, dos 2.219 atendimentos de 2004 – 89,5% deles em Curitiba -, 92,3% tratavam-se de casos de violência doméstica. Desses, 20,8% eram casos de violência física e 14,8% psicológica. O maior agressor, nesses casos extremos, é a mãe, geralmente por ser quem fica mais tempo com a criança: 59,5% dos casos. Em seguida, está o pai como agressor, em 23,4% dos casos.

Os dados preliminares de 2005 – de janeiro a junho – não mostram uma cena muito diferente. De 995 atendimentos em Curitiba, 85,2% eram de violência doméstica, sendo 29,3% deles a violência física e tendo a mãe como principal agressor em 41,8% das notificações. (NF)

Psicólogas se dividem quanto à eficácia da palmada

Favorável à proposta da deputada petista, a psicóloga Lídia Weber, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), afirma que estudos há muito provam que a palmada não resolve. "Isto é condenável. Há muito tempo se sabe que a punição física está ligada ao comportamento anti-social. É simplesmente uma obediência imediata, não uma aprendizagem", argumenta.

Segundo ela, todos os aspectos mostram que o castigo físico traz prejuízo para a criança. "Baixa a auto-estima da criança; há sempre o risco de abuso, pois os pais não batem para educar, mas porque estão com raiva e você acaba mostrando um descontrole e não um modelo adequado; e pode deixar marcas", aponta Lídia. Para a psicóloga, o principal risco é ultrapassar os limites. "A palmada pode ser o primeiro degrau da escada. O espancamento e a palmada têm o mesmo princípio e o limite não é tão preciso", alerta.

Em um estudo recente, a psicóloga da UFPR analisou o uso de palmadas e surras como prática educativa em 500 crianças e adolescentes curitibanos. A maioria delas – entre oito e 16 anos – já receberam castigos físicos: 88,1%. Em 86,1% desses casos foi a mãe quem bateu e em 58,6%, o pai. De todos os alunos que apanharam, 36,95% chegaram a ficar machucados. Os objetos utilizados nas surras são os mais diversos, assim como as partes do corpo atingidas. O que o estudo conclui é que quanto mais freqüentes e intensas as punições físicas, mais baixa a auto-estima das crianças que as sofreram.

No entanto, a psicóloga Rosa Maria Mariotto, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), diz que propor o fim das punições físicas ainda é uma questão a se pensar. "Temos de pensar se é necessário que o público esteja cada vez mais interferindo no privado e na ordem familiar. Com essa lei, o meu receio é que isso retire cada vez mais a autoridade dos pais de educar as crianças", opina. Para ela, educar vai além de simples carinho. "É preparar o filho para suportar o mundo, as frustrações, as necessidades, adversidades e renúncias. Se as crianças não receberem os dispositivos necessários para isso dificilmente suportariam. A questão deve ser: a que nível? É preciso definir isso e não colocar tudo (violência e palmadas) no mesmo balaio. Isso é muito perigoso, indica que todo mundo quer dar palmada nos filhos e que vai passar a espancar. Se diz que não pode dar palmada, então o quê?", questiona Rosa. (NF)

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