A biblioteca é uma apoteose à ordem. Catalogados e classificados, os livros e materiais de informação se organizam em números, categorias, assuntos, períodos. Entramos nela movidos pelo desejo/necessidade de um livro particular. Sabemos, na maior parte das vezes, o que procuramos. No caso de releitura, conhecemos até a posição do livro na estante. Procuramos títulos, autores, assuntos. Por isso, a biblioteca organiza-se enciclopedicamente por palavras-chave, por ordem alfabética e de assuntos. Comandada por códigos e mentes ordenadoras, assim o faz para guardar, preservar, facilitar, favorecer.
Gosto de imaginar, no entanto, um andar vagabundo por entre estantes e registros. Viajar entre as estantes é uma aventura dialética, o acaso no templo da ordem. Deixamo-nos levar pela curiosidade atrás de um livro desconhecido, mas que, estamos certos, nos acenará, chamando-nos, expondo-se, oferecido, ao nosso olhar leitor.
O acaso nessa circunstância torna-se transgressor, subversivo. E intensamente sedutor. O que nos dirá aquele volume desconhecido ao lado da obra-prima, lida e reconhecida? Escondido entre grossos volumes, aquele livro esquálido pode conter respostas à altura das encontradas nos volumes imponentes e imperiais? Já aquele livro pesado, que ocupa sozinho o espaço de três outros, conterá mais lições e verdades do que seu vizinho mais esbelto? O livro antigo, amarelado, esquecido, pode conter palavras duradouras, capazes de ecoar ainda no ruído incessante do mundo moderno? Enfim, andar sem rumo nem objetivo definido entre as estantes da biblioteca é mostrar a mesma disposição do movimento intencionalmente casual do corpo em férias: em tempo fora do tempo-rotina, disponível ao acaso, desamarrado de obrigações e relógio, lento e sem compromissos. Forçosamente livre, sem hora para começar ou para terminar. Um oásis de planos e expectativas prazerosas, fugindo intencionalmente do deserto avassalador e organizado do tempo do nec otium – negócio, trabalho, rotina, estresse.
Como é bem-vinda a sempre ansiada estação de férias!
Para ela, reservamos as chamadas leituras de férias. Qualquer leitor, do mais experiente ao mais reticente, sabe identificar com rapidez as suas leituras de férias, opostas a todas as demais. Intrigante este costume, hoje incentivado pela mídia, pelas livrarias, pelo professor, que insistem na qualificação de um certo tipo de texto como o indicado para este período do ano.
Em algumas vezes, me surpreendi recomendando como tarefa de férias aqueles livros cuja leitura o exíguo tempo escolar não comportava. Em troca, recebi o olhar vago ou o sorriso complacente dos estudantes. Ou porque não lêem, nem em tempo de aula, imagine ler nas férias, tempo em que leitura não é recomendável. Essa professora não tem desconfiômetro, afirmam sem palavras, com o pensamento refletido no espelho do olhar.
Outros sorriem monalisamente, porque o livro indicado pelo professor não corresponde aos seus (lá deles) critérios de leitura de férias. Isso de aproveitar o descanso para adiantar a leitura do ano seguinte, ou ler textos complementares de assuntos escolares, ou, ainda, ler livros que são bons somente para o gosto do professor, não são leituras de férias. Continuam a ser escolares. Cadê a esperada falta de compromisso e a liberdade das férias?
A incompatibilidade de gerações não impede que a curiosidade aflore, e se busque identificar quais são, então, os componentes dessa tão falada leitura de férias.
Para começar, cada leitor tem sua receita. Isso é muito importante: cada leitor se sente muito mais à vontade para escolher textos que não passarão pelo crivo da crítica, oficial ou dos amigos; que não sofrerão a censura da língua, da história ou da moral; que não indicarão erudição, modismo ou desvairismo. Indicarão, por vias transversais, as preferências pessoais, descoladas de utilidade.
Que leitor não tem, mesmo que implicitamente, critérios para selecionar os textos que acompanharão o tempo do ócio? E sobre esses textos cria fantasias de leitura voraz, rápida, interessada e prazerosa? Confiando nesses adjetivos, quais deixam de preparar um adequado rol de títulos que, em tese, será todo lido nos poucos 30 dias de férias? Mas, eis que as festas, passeios, viagens, sestas, conversas jogadas fora se sucedem. Cronometrados, trinta dias de descanso fluem com a leveza e rapidez de todos os demais dias. Talvez mais aligeirados pela disponibilidade para o ócio.
A pilha de livros pouco diminui. As férias, sim, diminuem. Ou melhor, minguam.
Já que as férias não foram suficientes, por que não aproveitar a seleção e distribuí-la ao longo do ano de trabalho? A leitura dessas obras terá sempre o gosto de férias, acrescido da sensação de transgressão, da fuga à rotina para criar outros oásis: os das férias em tempo simultâneo ao do trabalho.
Minha curiosidade sobre os critérios que os leitores adotam para designar certas obras como leitura de férias me leva a fazer um convite: proponho que eles criem um acróstico com as qualidades que definem o livro cuja leitura deve ser feita em tempo de ócio. Arrisco o meu:
Fácil, Exótico, Rápido, Intrigante, Antidepressivo, Sério-cômico.
Enquanto vocês montam seus acrósticos, volto a passear entre as estantes da biblioteca.