A imagem mais chocante da semana passada nada teve a ver com acidentes, catástrofes da natureza ou velórios. Mas esteve relacionada com lágrimas e emoção. Também com livro.
À meia-noite de sábado chegou às livrarias do País o mais recente volume da série do bruxinho: Harry Potter e o Enigma do Príncipe. A televisão mostrou que, na ânsia de comprar o volume, crianças, adolescentes e adultos se acotovelavam na porta de entrada e no interior de uma livraria. Alguns rostos expressavam tensão e ansiedade em níveis superiores ao permitido pelo bom senso e pela saúde pública.
A imagem televisiva mostrou para todo o Brasil uma adolescente aos prantos, exageradamente comovida, por haver conseguido o seu exemplar. A reação emocional da menina ultrapassava o fato que a motivara. Para quem, como eu, tem apregoado a importância cultural e interpessoal do livro, essa crise de choro poderia representar o clímax da paixão pelo livro. Mas é exatamente por isso que as lágrimas abundantes – e as caras e bocas decorrentes delas – provocaram em mim a sensação de que aquela não era, definitivamente, a forma de relação afetiva com o livro em que acredito.
A cobertura da mídia favoreceu essa reação desproporcional. Todos os veículos abriram espaço para o lançamento do livro e de todo o folclore e posição de colonizados que cercou e cerca cada um dos livros da série e dos subprodutos que gerou. Para enfatizar a chegada da continuação da saga e endoidecer os fanáticos (impedindo rotas de fuga), também foi lançado o filme baseado no quarto livro da série.
Será que alguém, em sã consciência, considera essas manifestações carnavalescas como procedimentos aceitáveis e duráveis na formação de leitores críticos? Propor-se a atravessar a madrugada lendo as aventuras de Potter, para que, às primeiras luzes da manhã, o competidor, ops!, o leitor, tenha chegado à última página da leitura, indica exatamente o quê? Fazer da leitura uma espécie de corrida aos índices do Guinness – objetivo de exibicionistas e desmedidos – converte o leitor de apostilas e livros didáticos em intérprete de um bom texto, seja científico, seja literário?
Sabe-se que o grupo e o coletivo exercem pressão sobre o comportamento de seus integrantes. Se todos os companheiros lêem Harry Potter, como pode o indivíduo isolado fugir à regra? Comentar, expor sua performance, desfilar nomes e fatos para comprovar a efetiva leitura, transformar o ler em aparecer e vangloriar-se disso são verbos e ações aplicáveis à situação. Tenho certeza que há livros que podem produzir resultados menos pífios, mais nobres para uma madrugada insone a ler.
Não recuso preventivamente nenhuma leitura. Encaro com disposição textos das mais diferentes qualidades, gêneros, formatos, assuntos e estilos. Mas não me obrigo a ir até o final de nenhum deles, a não ser que efetivamente me agradem. A bem da verdade, ressalvo a leitura de documentos e alguns poucos livros científicos de minha área de atuação profissional: leitura árida, mas obrigatória.
Mas a série Potter não consigo ler. Falta-me crença, objetivo, gosto, necessidade. Ao texto faltam qualidade, novidade, profundidade. O trio de substantivos em ade nada tem a ver com a minha idade, esclareço, antes que algum leitor, poeta e contestador, replique com ironia. Prefiro creditar a repulsa à minha história de leitura: aprendi a buscar nos textos algo mais do que sensações epidérmicas. E se as procuro em momentos de necessária alienação mental, não preciso ler toda uma série de seis massudos volumes para satisfazê-las.
Principalmente, não faço o jogo de adultos que acreditam que ?pelo menos estão lendo alguma coisa?. Poderiam ler algo melhor, não? Essas crianças e adolescentes estão submissos a uma opressiva campanha de vendas que aproveita a falha existente em nossa cultura. Entre o livro de qualidade e a oralidade, abre-se o espaço para a inclusão da literatura de entretenimento sob a capa (sem trocadilhos) de leitura prazerosa. Prazer tão intenso que leva a crises emocionais que beiram o desvario.
Antes que o leitor procure atribuir ares quixotescos a este escrito, uma crônica combatendo a indústria cultural, principalmente a de língua inglesa, esclareço que já li muita, e continuo a ler, literatura de consolação, mas não acredito que ela possa promover o surgimento de um leitor crítico, como se faz necessário criar em nossa atualidade.
Umberto Eco, no Pós-escrito ao Nome da rosa, e com a autoridade de escritor de best sellers, esclarece a tênue fronteira entre dois objetivos-significados: ?Atingir um vasto público e povoar seus sonhos talvez signifique fazer vanguarda, deixando-nos ainda a liberdade de dizer que povoar os sonhos dos leitores não significa necessariamente consolá-los. Pode significar obcecá-los?.
Há, entre identificação, consolo e obsessão, uma escala rumo a comportamentos de risco. Na valorização indiscriminada da leitura pela leitura, corremos o risco da perda de leitores efetivos, para ficar apenas com os vencedores de corridas alienadoras.
