O primeiro semestre de cada ano é período de muito trabalho na universidade. Corresponde à temporada de conclusão e apresentação de monografias dos cursos de especialização. É o esforço final dos estudantes em busca do título acadêmico. É a oportunidade de demonstrar o que aprenderam, o que pesquisaram, o que descobriram e como registraram tudo isso num texto científico.

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Todos os anos as mesmas dificuldades, queixas e atropelo. Como em uma vitrina, ficam expostas as fraturas e feridas do sistema de ensino brasileiro. O estudo que não conseguiu preencher as lacunas de informações, os tropeços em relação à compreensão de textos, a imensa dificuldade de produzir um texto longo e de mediana complexidade. Nessa ocasião, percebe-se como os alunos, pretendentes a especialistas, se aproximam e se agrupam por semelhança. O observador atento chega a definir quais são as características identificadoras de cada grupo.

O primeiro deles é o grupo que, por absoluta falta de método de estudo, ou de persistência, ou por indolência, não consegue cumprir os prazos de término do trabalho. Lamentável é a frouxidão do ensino anterior que não deu aos alunos condições de organizar o material de estudo, de estabelecer um cronograma razoável (e cumpri-lo!), ou de superar defeitos da formação com um esforço extra. Derrotados pela omissão e desorganização, incorporam-se ao número crescente das pessoas que são sorvidas pelo redemoinho do tempo e das boas intenções fracassadas, visto que não passam do estágio das intenções.

Felizmente mais numerosos são os alunos que, ainda com deficiências de formação, transformam as falhas em motivação para sua superação. Madrugadas e finais de semanas são sacrificados aos objetivos maiores: o da titulação e o do encerramento de uma etapa do processo educativo. No entanto, também atestam o despreparo proveniente de uma escola que os deixou sem preocupação com o desenvolvimento da visão crítica, sem independência para pesquisar, com recursos redacionais mínimos, sem conhecimento das regras básicas de pesquisa e normas de apresentação de trabalhos científicos.

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Constituem a parcela mais significativa de uma turma. Um aluno pertencente a esta categoria costuma procurar o professor-orientador com uma lista de possíveis assuntos para a monografia, que vão desde o genoma das serpentes à Constituição do ex-Congo Belga, da obra completa de Machado de Assis à polimorfia do floco de neve, da galáxia de Gutenberg à história da pólvora. Sem direção, sem recorte, sambando como um….(poupo-me da acusação de politicamente incorreta). Tem a mesma dose de angústia e ansiedade que seu irmão gêmeo: o aluno que não tem a menor idéia sobre assunto algum. O professor-orientador desdobra-se, então, em um Dicionário de Assuntos para Monografias de Especialização. Os integrantes desse grupo da morte são os que vão chegar exauridos ao final do trabalho. Tentativas após tentativas, o texto final sairá manco e um tanto frouxo, por mais que a orientação procure organizar e recortar. A monografia resultante chega à apresentação como um viajante penitente que, em contínuas idas e vindas do aluno ao orientador, chega ao destino final da jornada com olheiras, curvado e coberto de pó.

O esforço despendido, no entanto, resulta na satisfação do trabalho concluído. Ao final da epopéia, o aluno não chega a descobertas extraordinárias, nem consegue um texto merecedor de publicação, mas realiza uma façanha: dá exemplo dos prejuízos científicos e físicos que a escola, sem seriedade nem objetivos educacionais, conseguiu tatuar em seu espírito e inteligência.

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Um grupo pequeno de estudantes faz a alma professoral vibrar em plenitude. Alguns desses estudantes também passaram por uma escola deficiente, que superaram por esforço pessoal ou pelo ambiente familiar educador. Outros porque simplesmente tiveram uma escola de qualidade. Pensam, organizam, pesquisam, escrevem e criam com desenvoltura e adequação. Saem quilômetros à frente dos esforçados e, se o orientador sopra de leve, voam para paisagens novas e amplas. Quando retornam, trazem tesouros. São capazes de propor e, ao analisar, de rever sua própria produção. Redigem com o cuidado de quem desconhece a língua e suas potencialidades, e por isso mesmo, duvidam, indagam e reescrevem o tempo todo. Lêem com o critério e atenção de quem considera o diálogo com os textos uma fonte indispensável de conhecimento e propostas. O orientador vive gostosamente a função de mediador e leitor: chegam-lhe às mãos páginas de aprendizagem. Na pesquisa e na elaboração final crescem mestres os dois, aprendizes os dois. Neles, a escola e a universidade cumprem seu papel e seus fins formadores.

Nos porões, nos subterrâneos, nas vielas sujas e escuras, vivem os integrantes do quarto grupo. São aqueles que, desprovidos de conhecimento, vontade e retidão de caráter, recorrem aos mercenários de trabalhos, pesquisas e monografias. Por trinta dinheiros compram o texto e a vergonha, o trabalho e o valor social, a pesquisa e a consciência. E se mostram indignados ao serem confrontados com o delito. Juram e protestam, choram e ameaçam, agridem e movem ações judiciais. Não hesitam, não se arrependem, não se emendam.

Ao iniciar este curto comentário, pensava tratar de assunto puramente universitário. Ao final, descobri que tratei, sob a capa do estudo, do caráter humano.