Crianças que são exemplos de dedicação aos estudos

Uma lata de alumínio. Uma vela. Um arame. Faça um furo na lata, que deve estar deitada, do tamanho da circunferência da vela. Encaixe a vela. Em cima da lata, faça dois furos pequenos, onde o arame deve ser colocado, após ser moldado como uma alça. É assim como se faz a ?lanterninha?, usada para iluminar o caminho dos estudantes que moram na Colônia Castelhanos, comunidade que fica incrustada na Serra do Mar, em São José dos Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba.

Muitos precisam caminhar por estradas de chão durante a madrugada para pegar um ônibus, que os leva até o Colégio Estadual Eunice Borges da Rocha, no bairro Contenda. A escuridão em plena Mata Atlântica é rompida apenas pela luz da vela, que ilumina os sonhos de um futuro melhor.

Os irmãos Daniel e Ricardo Oliveira Lamberg, de 15 e 13 anos, respectivamente, estudam na zona urbana. Daniel vai cursar a 8.ª série do ensino fundamental em 2007 e Ricardo passou para a 7.ª. De segunda a sexta-feira, durante o período de aulas, o despertador na casa dos Lamberg toca às 4h. Maria, a mãe de Daniel e Ricardo, levanta, os acorda e prepara o café da manhã. Às 4h40 saem de casa e caminham meia hora até o ponto de ônibus. Às 5h30 o ônibus chega. O veículo faz pinga-pinga, acolhendo os outros alunos e passageiros regulares que também vão para a ?cidade?. Da Serra do Mar até o asfalto da BR-376, a espera e o sacolejo dentro do ônibus é de 1h30. As aulas começam às 7h30 da manhã. O mesmo roteiro é seguido a partir de meio-dia, quando Daniel e Ricardo saem da escola. Chegam em casa quase duas horas depois.

Wigold Barth construiu uma ponte sobre o Rio São João para os filhos poderem estudar. Família habita casa humilde na região.

Mesmo com essa rotina desgastante, os dois não pensam de maneira alguma deixar de estudar. Possuem o mesmo sonho: se tornarem policiais florestais. E nada mais propício para quem chega em casa e tem uma vista simplesmente maravilhosa da Serra do Mar. Nada mais propício para quem entra na Mata Atlântica e já conhece os seus segredos. Sabe dos perigos, dos animais, das plantas, das cachoeiras. A Mata Atlântica é quintal da casa deles.

?Gosto de ir para a escola para aprender bastante. Para ter um futuro melhor do que os meus pais?, diz Daniel. Tanto ele quanto Ricardo nem cogitam a possibilidade de ir morar na ?cidade?, de deixar aquele quintal esplêndido. ?Quero continuar morando aqui. A gente é mais livre, tem tudo limpo, sem poluição?, relembra Daniel. O sonho de ser policial florestal é mais estimulado ainda quando Daniel e Ricardo encontram com as equipes de profissionais que vão até a região onde moram para cuidar da natureza, na própria definição deles.

Crianças da Colônia Castelhanos fazem questão de estudar para terem futuro melhor, mas nem cogitam ir morar na ?cidade? e deixar aquele quintal esplêndido.

Agora, no período de férias, os dois aproveitam o que a Mata Atlântica pode oferecer, ao lado da irmã Renata – que estuda em uma escola municipal na própria comunidade Castelhanos.

Nadam no rio, fazem pescaria, entram no meio da mata. Brincam em uma minicidade construída por eles mesmos – com direito a usina hidrelétrica. E também ajudam os pais no trabalho. Porque querem. Antônio faz questão de frisar que não pede. Mas os meninos querem. E muito! Até propõem atividades dentro do trabalho. A família cuida de uma chácara e também trabalha na plantação de banana. Antônio e outros trabalhadores pretendem dar seqüência no projeto de criar uma cooperativa na região. A renda extra pode melhorar a vida de quem vive isolado.

Ponte

Foto: Chuniti Kawamura/O EstadoUma ponte sobre o Rio São João. Se fosse de concreto, até tudo bem. Mas é de madeira, com vãos entre as tábuas, em cima de um ponto do rio em que há correnteza. Dá medo para quem é novato no local e ainda mais quando se atravessa pela primeira vez. Wigold Barth construiu a ponte para a família poder ter acesso ao mundo mais fácil. Ele, a sua mulher – Janete -, e os filhos moram em uma das margens do Rio São João. Para ir a qualquer lugar, precisam atravessar a ponte. Já estão acostumados com isso. Agora é muito melhor. Antes, o travessia era feita em uma canoa furada.

Foto: Chuniti Kawamura/O EstadoCaroline, a filha de 12 anos, levanta cedo, antes das 5 horas da manhã. Ela estuda no Colégio Estadual Eunice Borges da Rocha, a mesma escola de Daniel e Ricardo. Ela se prepara para ir estudar, atravessa a ponte e caminha um pouco até o ponto de ônibus. Fica sacolejando por cerca de uma hora, até chegar no colégio. ?É difícil acordar cedo. Mas vale a pena para estudar e ser alguém na vida?, fala. Apesar de saber da importância disso, Caroline ainda não sabe o que fazer quando crescer. Mas ainda tem tempo para decidir. Por enquanto, nesse período de férias, ela quer é aproveitar o máximo o Rio São João, onde brinca, nada, dá saltos. Descansar para enfrentar tudo de novo no ano que vem.

História dos estudantes foi mostrada em filme

Os estudantes da Colônia Castelhanos expressam uma valorização incrível sobre a importância dos estudos. Poderiam desistir, mas não fazem isso. Têm mais gosto em estudar do que muitas crianças que moram em grandes centros urbanos, que estudam em colégios particulares e que vão de carro para a escola. A história de vida de Daniel, Ricardo e Caroline é contada no curta Caminho da Escola – Paraná, que traduz o desejo humano de ir além. Com direção de Heloísa Passos e produção de Maquina Produções, o filme mostra a realidade da comunidade Castelhanos e de seus moradores, principalmente os estudantes. O curta, vencedor do primeiro edital de cinema e vídeo do governo do Estado, já foi vendido para o Canal Futura, onde será exibido.

As filmagens aconteceram no ano passado e muita coisa mudou após o curta. As condições para os estudantes foram facilitadas. O ônibus está chegando mais perto dos estudantes. As crianças que estudam na escola municipal da Colônia Castelhanos vão até o local com uma van, que vai até onde moram. Antes, além da longa caminhada, o transporte era feito com uma kombi. Conseguir isto já é uma vitória, mas a principal lição que fica é o exemplo de como pode se dar um outro rumo para a vida. ?As crianças têm contato com uma outra realidade. A população precisa saber do esforço que fazem, em um trajeto que para muitos dura até três horas, para ir para a escola?, comenta Heloísa.

O projeto teve um resultado ótimo e, diante disso, a intenção é fazer um longa-metragem, já aprovado pela Lei do Audiovisual. A abordagem do tema será expandida para outras regiões brasileiras. A intenção é mostrar um caso do Paraná e dois de outros locais. Heloísa conta que ainda não há previsão para iniciar esta etapa. Ela e sua equipe estão fazendo contatos para patrocínios.

Conjunto de fatores impede acesso à educação

A questão geográfica é apenas um dos fatores que dificultam o acesso à escola ou causam a desistência de muitos alunos. A necessidade de trabalhar, a violência, a gravidez na adolescência e até a falta de investimentos são outros pontos que influenciam no acesso à educação. É um conjunto de fatores que acabam impedindo o estudo de muitas crianças e adolescentes.

A professora do Departamento de Planejamento e Administração Escolar da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Andrea Barbosa Gouveia, afirma que o acesso ao ensino fundamental (1.ª a 8.ª séries) é substancial, com 96% da cobertura de todas as crianças nesta faixa etária. A situação mais complicada é na educação infantil (4 a 6 anos), na qual o atendimento nacional é de 60%. O índice cai para 40% na faixa etária entre 0 e 3 anos, em que existe uma grande demanda. No ensino médio, a cobertura é de 60% dos jovens da faixa entre os 15 e 17 anos. As duas pontas do sistema educacional brasileiro possuem problemas.

Para Andrea, muitos jovens deixam de concluir os estudos porque terminam o ensino fundamental sem perspectivas e com a necessidade de ajudar na renda familiar. Muitos ainda têm o desejo de continuar estudando, mas nem sempre existem vagas no período noturno para aliar as duas atividades. ?E assim se entra no ciclo de que não tem trabalho porque não tem estudo. Mas isso também poderia mudar se as escolas pensassem em propostas pedagógicas para envolver o jovem?, avalia.

No ensino infantil, Andrea acredita que a grande questão é o investimento. Ela fala que o acesso pode ser facilitado com a articulação de diversos órgãos, que oferecem a assistência social e o trabalho, além da educação.

De acordo com as pesquisas que a professora fez sobre políticas educacionais, o acesso fora das grandes cidades é mais difícil. Na Região Metropolitana de Curitiba, alguns municípios conseguem atender apenas 22% das crianças que precisam de educação infantil, enquanto em Curitiba o índice é de 52%.

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