Alguns podem até duvidar, mas desde as séries iniciais é possível trabalhar e desenvolver a consciência crítica. Muitas crianças, quando incitadas pelo professor, podem gerar grandes discussões. Verdadeiros debates em sala de aula e, o principal, cheios de argumentação. Profissionais em educação alegam que elaborar o conhecimento a partir do que as crianças trazem como conteúdo é um método bastante eficaz para o desenvolvimento de um cidadão e a formação de um adulto pronto para enfrentar a vida de frente.
Em algumas escolas de Curitiba, esse é o desafio diário da sala de aula. "Desde pequenos, a gente nunca leva a resposta pronta para a criança. A partir das dúvidas delas é que parte o conhecimento. O professor é o mediador e os verdadeiros descobridores são as crianças", afirma a pedagoga Déborah Borges, do Colégio Martinus, que fica no bairro Portão. Segundo ela, o trabalho de pesquisa em várias fontes, extras ao livro didático – revista, jornais, internet, contribui bastante com o processo. "Não temos livros didáticos. Os professores elaboram as atividades, com textos atuais e cotidianos", diz.
Com os pequenos, a pedagoga diz que é trabalhado a criticidade e discussão sobre questões cotidianas dentro do que eles alcançam. "Fizemos uma atividade, com a terceira série (ensino fundamental) onde os alunos tinham que desenhar para que o professor escrevesse um documento, com uma série de reivindicações. Aparecem questões políticas, sociais, ambientais e até a necessidade de se cuidar dos idosos", conta Déborah.
Ela explica que a criança vai se tornar crítica, quando tiver argumentações suficientes e souber bem o que está falando, ou seja, construindo o seu próprio conhecimento. "Com certeza tem como fazer isso. Basta que o conhecimento faça sentido e tenha significado para a criança. É preciso permitir que ela tenha autonomia", indica.
Verificação
A equipe de reportagem de O Estado foi até a escola para verificar como as crianças aprendiam. A primeira sala visitada foi o Infantil II. A professora Patrícia Maiorque contou que, naquele dia, a dúvida que levou a um debate entre as crianças foi um fenômeno da natureza. "Eles queriam saber como era um furacão. Primeiro eu perguntei para eles o que sabiam, depois conversamos sobre o Katrina e eles começaram a conversar sobre o assunto entre si. O conhecimento foi trabalhado no momento da dúvida", lembra a professora.
Outro episódio que garantiu às crianças ainda mais conhecimento partiu de um papel no parque. "Um dia fomos no parque e eles encontraram muito lixo e começaram a questionar sobre em que tipo de lixo se coloca determinados materiais. Começamos então a trabalhar na prática sobre lixo e reciclagem", conta Patrícia.
No Infantil III, uma garota levantou uma questão a princípio muito simples. "Eu duvidei que meu primo conseguisse rodar a bola de basquete com apenas um dedo!", questionou. Logo a dúvida virou uma discussão, que partiu para um debate, do qual as 14 crianças participaram opinando. Em pouco tempo, sem que a professora interferisse, chegaram a uma palavra e uma conclusão: "é preciso equilíbrio". A professora do Infantil III, Solange Taborda, diz que essa é uma atividade diária das crianças. "É o momento rodinha, quando eles trazem questões e a gente discute, eles argumentam e refletem dentro do contexto deles", explica.
Iniciativas existem mas ainda são poucas
Segundo a professora de Psicologia da Educação, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Tânia Stoltz, sem dúvida é possível trabalhar a criticidade com as crianças. "Partir do que a criança tem é muito importante, mas é preciso entrar numa situação de conflito com ela para que perceba que precisa saber mais. É aí que entra o conhecimento científico, que lhes garante mais argumento", explica.
O papel da escola é fundamental nesse processo de caminho para a crítica. No entanto, como lamenta Tânia, essa importância nem sempre é notada.
Ela diz que muitas são as iniciativas interessantes nas escolas curitibanas, mas ainda há muito a ser trabalhado. "A escola não vem desempenhando bem o seu papel. Muito fica no plano do discursos e pouco na prática. Percebemos isso pelo tipo de avaliação que ainda é aplicada. Em geral, é apenas a repetição, reprodução mera e simples. O que se espera é a resposta correta. Falta caminhar no sentido da operacionalização daquilo que se tem como teoria", afirma Tânia.
Uma avaliação que também colabore com a crítica, como explica a educadora da UFPR, seria avaliar o conhecimento da área, em problemas que fazem parte da realidade concreta do aluno. O que deve ser cobrado, segundo ela, é a capacidade de transferência, interrelação. "Todas as áreas do conhecimento podem contribuir para reflexão crítica do aluno, permitindo a relação entre o novo com o já conhecido para o aluno poder progredir", orienta.
Ainda de acordo com a educadora, no que diz respeito às escolas públicas, o problema ainda é a formação. "No que tange a escola pública há muito o que fazer. É preciso, principalmente, rever a formação continuada. O professor precisa ter mais tempo", alerta Tânia. (NF)
Formação de professores não é atualizada
"A consciência crítica deve ser trabalhada desde a educação infantil. Se não for desenvolvida a criticidade e a argumentação durante o processo educacional, a pessoa não terá isso nunca." Essa é a opinião do psicólogo Marcos Meyer. Ele considera as séries iniciais o período ideal para se trabalhar a crítica e a autonomia sobre o conhecimento. Entre as atividades fundamentais para tal desenvolvimento, o profissional enumera as atividades em grupo e o poder de opinar sobre o trabalho que está sendo desenvolvido.
No entanto, segundo Meyer, o principal empecilho é a formação dos profissionais da educação.
"O professor geralmente não sabe trabalhar dessa forma, dando autonomia ao aluno. É difícil encontrar um professor que saiba trabalhar isso. Nessa área, as universidades estão desatualizadas e precisam de uma reestruturação. É uma necessidade real", garante o psicólogo, que é diretor de uma faculdade em Curitiba.
O professor, segundo ele, deve ter o papel de mediador. "Aqui na faculdade nós oferecemos a todos os professores o curso de mediação. É preciso que ele saiba ouvir, dialogar e chamar o aluno para a pesquisa. É preciso saber aproveitar o que o aluno já tem, e colocar essa visão dele em xeque com a dos colegas e a do professor. Isso deve ser feito em todas as séries e todas as disciplinas", garante Meyer.
Saber desenvolver em sala essa prática de mediação, segundo Meyer, é o que faz a diferença no ensino.
"Tenho visto que ser mediador faz a diferença. É essencial. E já existem, hoje, teorias mais recentes e completas do que a de Piaget e Vigotski. É a teoria da mediação de Feurstein (que fundamenta a interação professor/aluno), que já é trabalhada no Rio Grande do Sul, em São Paulo e Rio de Janeiro.
No entanto, infelizmente, as universidades do Paraná ainda não conseguiram incluir nos currículos de licenciatura e bacharelado", lamenta Meyer. (NF)