A revolta chilena ganhou corpo quando o governo de Sebastián Piñera ridicularizou suas exigências iniciais e logo tornou-se a maior mobilização pós-ditadura, em reação ao uso do Exército na repressão. Mais de um milhão foram às ruas. A raiz da insatisfação, entretanto, está em distorções acumuladas por décadas, em governos de direita e de esquerda, escondidas em bons indicadores macroeconômicos que não se converteram em alívio nas contas, pelo contrário.
Os chilenos nunca estiveram tão endividados. De tudo que uma família recebe no Chile, 73% são dedicados a pagar dívidas, segundo o Banco Central. Em um dos cafés abertos em Santiago, na sexta-feira, um feriado que terminaria em violentos protestos, o garçom Alejandro Segovia, de 30 anos, comentava, sem moderar a voz, não entender a boa imagem chilena no exterior.
“Quem não se endivida no Chile, não vive”, disse ao Estado, enquanto servia um café expresso vendido a R$ 10,20. O custo de vida e os baixos salários têm relação direta com a crise. A oferta de educação e saúde gratuitas existe, mas fica restrita aos mais pobres. E este não é o rosto desses protestos.
Os atos têm a cara da classe média. Mais exatamente de jovens e seus avós – que não querem mais endividar-se com as cotas de aposentadoria, ensino, saúde e transporte. Seus cartazes não pedem estatização desses setores. Denunciam a falta de poder do Estado para monitorar a alta dos preços.
Quando a tarifa do metrô foi elevada em 30 pesos (R$ 0,16), o que detonou o descontentamento entre estudantes há três semanas, tratava-se do 21.º aumento em 12 anos. Para atravessar Santiago, um motorista passa por oito pedágios.
Aos 30 anos, Segovia sabe que estará endividado até os 50. Terá de pagar 240 parcelas, hoje de 58 mil pesos (R$ 311), pelo curso de nível técnico de quatro anos em administração de empresas. No total, R$ 43 mil.
Ele não tem alternativa. Para tentar uma bolsa, precisaria ter renda inferior a 200 mil pesos (R$ 1 mil). Só que recebe o salário mínimo. São 301 mil pesos (R$ 1,6 mil) por mês, que passarão a 350 mil pesos (1,8 mil). O aumento foi uma das concessões feitas por Piñera, em um pacote de US$ 1,2 bilhão.
Além de anular o aumento no metrô, o presidente elevou o mínimo, suspendeu reajustes de pedágio, mudou o gabinete. Recuou até no principal ponto de sua reforma tributária, uma renúncia fiscal de US$ 800 milhões por ano, planejada para atrair empresas.
Pesquisa da consultoria Cadem feita ainda durante o estado de emergência e antes da marcha que reuniu mais de um milhão no dia 25, dá a ele aprovação de 14%.
“Piñera é um pato manco, como dizem os americanos (presidente que segue no cargo, mas sem poder). Se já não cumpriria suas metas, muito menos agora”, avalia o cientista político Raul Sohr. “Antes de assumir, em 2010, pegou um terremoto que matou 800. E agora este, político”, lembra.
Entre 1965 e 2014, a renda per capita chilena aumentou de US$ 14 mil para US$ 36 mil. A questão é que a maior parte da população não se vê vivendo naquilo que Piñera chamou de “oásis” dias antes de os protestos começarem.
Segundo o Ministério de Desenvolvimento Social, em 1990, a pobreza no Chile superava os 43%. Hoje, é de 10%. “Isso fez surgir uma classe média baixa altamente vulnerável, com risco de cair novamente na pobreza. Eles são os novos indignados, um terço”, diz Mario Waissbluth, especialista do centro de sistemas públicos da Universidade do Chile.
Conforme o sociólogo Alejandro Marambio, professor da Universidade Católica de Maule, o endividamento chileno tem como peculiaridade o fácil acesso empréstimos em grandes lojas. O principal modo de se endividar são os cartões de crédito desses estabelecimentos (42% dos casos). “Em geral, são compras de bens básicos”, explica.
Uma simplificação corrente sobre os atos no Chile é que eles seriam de esquerda ou contra o neoliberalismo. Há 83% de apoio às manifestações, segundo a consultoria Activa Research, o que coloca entre eles boa parte dos eleitores de Piñera. Um sintoma dessa transversalidade ideológica são protestos inéditos em zonas de alto padrão, como Las Condes e Barrio Alto.
Os liberais descontentes alegam que a riqueza do país, um polo de mineração e pesca, parou na mão de famílias beneficiadas com as privatizações conduzidas pelo ditador Augusto Pinochet. “As privações de Pinochet foram um escândalo. Poucas famílias se tornaram donas de gigantescas estatais sem pagar um peso. Essas fraudes são conhecidas”, critica o analista Mario Waissbluth.
A Constituição chilena, de 1980, foi escrita 10 anos antes do fim da ditadura (1973-1990). Um de seus eixos é dar ao Estado um papel subsidiário, o que explica as poucas ferramentas de controle sobre a iniciativa privada. Esta é agora a única concessão que interessa aos manifestantes: uma reforma constitucional que permita ao Estado controlar abuso de preços.
Outro equívoco em relação ao movimento chileno é reduzi-lo a um ato contra a desigualdade, pois só ela não explicaria o seu alcance. O Chile é o sétimo país mais desigual do mundo, de acordo com o Coeficiente de Gini, mas está atrás de Haiti (2.º), Honduras (3.º), Colômbia (4.º), Brasil (5.º) e Panamá (6.º). O mais desigual é a África do Sul. Entre esses países, o Chile é o de melhor nível educacional, o que poderia explicar o inconformismo.
“Em boa parte, estamos falando em desigualdade no tratamento, de oportunidades. Há uma desigualdade material, mas há uma indignação com o fato de o país ter crescido muito e vários não terem influência política”, diz Eduardo Engel, professor da Universidade do Chile e diretor do centro de estudos Espaço Público. Sua interpretação reforça a mensagem de uma das pichações que tomaram todos os prédios nos dois quilômetros que separam a Praça Itália, centro das manifestações, do Palácio La Moneda. “Não são 30 pesos, são 30 anos.”
Revolta contra política tradicional abre porta a um nome populista no Chile
Quando estudantes saltaram por três dias as catracas do metrô de Santiago, rebelando-se contra um aumento 30 pesos (o equivalente a R$ 0,16) e chamando outros a “evadir” o sistema, não foram levados a sério. Como o reajuste valeria só para o horário de pico, após as 7 horas da manhã, o ministro da Economia, Juan André Fontaine, sugeriu: “Quem madrugar será beneficiado por uma tarifa mais baixa.”
Aquele era o 21.º aumento em 12 anos e a sugestão levou o próprio Fontaine mais cedo para casa. Ele perdeu o emprego na reforma ministerial feita por Sebastián Piñera em resposta a manifestações que têm no sistema político um alvo central.
Tanto que uma das exigências que o presidente tenta colocar em prática é reduzir os ganhos deputados e senadores, por meio do corte de diárias. Os legisladores ganham 9 milhões de pesos brutos (R$ 48 mil), enquanto o salário mínimo fica em 350 mil (R$ 1,8 mil).
O uso das Forças Armadas, ainda associadas à ditadura, durante os 10 dias de estado de emergência, acirrou essa revolta contra as instituições. Tais circunstâncias levaram analistas e políticos a questionar se o Chile, caracterizado por sua alternância equilibrada entre esquerda e direita, pautada em políticas de Estado, poderia eleger um populista.
“Há claramente um sentimento contra as elites no Chile e hoje o populismo tem essa carga antielite. Mas nunca tivemos lideranças carismáticas. Todos nossos grandes presidentes estiveram em linhas constitucionais. Tivemos muita entrada de imigrantes recentemente, mas nem isso estimulou a ascensão de um xenófobo”, afirma o cientista político Raul Sohr.
Os números da última eleição – o voto é opcional – reforçam essa desesperança. Houve participação de 46,7% no primeiro turno em 2017. Destes, 36% votaram em Piñera. No segundo turno, Piñera venceu o esquerdista Alejandro Guillier ao obter 54% dos votos válidos. Mas a participação também foi baixa: 49%.
A terceira colocada naquela eleição, Beatriz Sánchez (20% no primeiro turno), à esquerda de Guillier, não se atreve a descartar a repetição do fenômeno populista no Chile. “Ninguém pode prever o que ocorrerá depois deste movimento. A direita tem uma tática antiga que é despolitizar a sociedade. Falar de todos os políticos como o problema”, disse ao Estado.
Duas semanas após as depredações feitas por anarquistas em mais de 40 estações no dia 18, após os três dias em que estudantes chamaram a “evadir” o sistema de metrô, essa palavra tornou-se um símbolo das manifestações. Até por dupla acepção. Depois de Piñera criticar os estudantes que “evadiam” o metrô, alguns responderam que ele já havia sido punido por “evasão” de impostos. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.