Brasileiro teme ser vítima da violência

O brasileiro tem muito medo da violência e acredita que seu governo não possui rigidez suficiente no controle das armas que entram e saem do País ano a ano. A constatação é de uma pesquisa divulgada recentemente pela campanha Control Arms, iniciativa internacional que visa ao controle do comércio mundial de armas de fogo. Mil pessoas foram ouvidas em 70 cidades brasileiras, no mês passado, além de outros cinco países – Guatemala, Canadá, Índia, Grã-Bretanha e África do Sul. No entanto, em todas as perguntas referentes à falta de segurança e seus reflexos por conta das armas, o Brasil aparece com a maior porcentagem dentre os pesquisados.

Cinco perguntas constaram da pesquisa. O resultado foi que 93% dos brasileiros concordaram que deve haver controles internacionais rígidos sobre o destino das armas exportadas, mais que os sul africanos (73%), britânicos (86%) e guatemaltecos (91%). Quanto às armas que entram no país, 96% dos brasileiros gostariam que houvesse mais controle sobre as mesmas; mais uma vez, estatística superior à apresentada pelos outros países, a exemplo da Índia (93%) e Canadá (92%).

O brasileiro também demonstrou se sentir a maior vítima da violência armada dentre todos os pesquisados. 94% das respostas apontaram que os entrevistados têm medo de se tornarem tais vítimas, dados superiores ao que responderam guatemaltecos (88%), sul africanos (72%), indianos (41%), britânicos (39%) e canadenses (36%). Questionados se é fácil obter uma arma de fogo no País, 91% dos brasileiros responderam que sim, contra 77% dos guatemaltecos, 60% dos britânicos, 59% dos canadenses, 54% dos sul africanos e 30% dos indianos. A outra pergunta da pesquisa era referente a experiências com armas de fogo: 4% dos brasileiros responderam que já foram pessoalmente afetados, 18% já tiveram um familiar afetado, 32% conhecem alguém que já passou pela experiência e 47% dos entrevistados responderam não ter sido afetados e nem conhecer alguém que tenha sido.

Contraste

A diretora da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) Instituto Sou da Paz, Mariana Montoro, que coordena a Control Arms no Brasil, faz um paralelo entre as respostas da pesquisa e o resultado do referendo realizado no ano passado, sobre a proibição da venda de armas de fogo no País. Apesar de parecerem contrastantes, segundo ela, os resultados são, na verdade, um espelho do que os brasileiros argumentaram à época ao não querer proibir a venda de armas. ?As pessoas diziam não acreditar no controle de armas isolado de outras ações de combate à violência. O Brasil vive problema caótico de segurança; resolve as armas, mas não a polícia ou o sistema judiciário. Outro argumento era que não adiantava controlar só no Brasil e não na América Latina. A pesquisa, apesar de contraditória com o resultado do referendo, é perfeita no que se refere aos questionamentos que ouvíamos nos debates?, analisa.

Mesmo assim, reitera, havia dúvidas se o brasileiro tinha mudado seu parecer a respeito da venda legal de armas depois de ouvir mais sobre o processo de produção e distribuição das mesmas. ?A grande diferença da luta contra as drogas e as armas é que as drogas são produzidas e comercializadas ilegalmente. Tem pouco que se possa fazer no controle delas, inclusive leis. Mas 95% de todas as armas espalhadas pelo mundo foram produzidas legalmente. No começo é legal, e é nesse momento que deve ser controlada. Para nós, a população brasileira há muito tempo estava convencida de que as armas legais alimentam as ilegais, o que nos deu a impressão de uma mudança de cultura?, afirma. Tal percepção, para a diretora do Sou da Paz, se deu a partir da campanha de entrega voluntária de armas, entre 2004 e 2005, quando mais de 600 mil armas de fogo foram entregues à destruição.

Para sociólogo, pesquisa demonstra ambigüidade

?A pesquisa pode demonstrar o quanto a sociedade brasileira é ambígua em relação à sua percepção de segurança pública.? É o que avalia o sociólogo e coordenador do Grupo de Estudos da Violência da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Pedro Bodê, ao verificar as respostas do questionário da Control Arms. ?Há pouco tempo houve o referendo para tentar impedir a venda de armas e as pessoas votaram contra a proibição. Se tivessem votado a favor, esse controle que dizem faltar poderia ter melhorado?, acredita.

As alegações de que a proibição implicaria na perda de direitos, afirma, fez com que a sociedade evitasse se submeter a uma profunda reformulação do sistema e, assim, deixasse de atacar as reais causas do problema. ?Sempre querem mais do mesmo, ou seja, mais polícia, mais prisão, mais punição, sendo que foram exatamente esses modelos atuais que originaram o quadro de violência que conhecemos?, explica.

Para o professor, a chance que o País tinha de tentar mais controle sobre armas e, conseqüentemente, diminuir seus medos e anseios em relação à violência armada, passou. ?O lobby das armas é poderoso e sistematicamente interpõe obstáculos para que não haja controle sobre a venda de armas interna e externamente. Quando se deu a sugestão de criar mais obstáculos à comercialização, a idéia era essa?, argumenta. O medo impetrado para a não-proibição da venda de armas, diz, pode ter sido o culpado para o brasileiro não aproveitar a chance de dar mais um passo rumo ao combate da violência armada. ?A segurança pública normalmente é alvo dessa passionalidade, e não de ações racionais. Mobilizou ainda mais o medo nas pessoas; a diferença é que a arma não garante a segurança de ninguém.? Prova disso seriam as respostas de medo e falta de controle dadas sete meses depois da escolha em manter o comércio de armas no Brasil liberado.

Facilidade no comércio incomoda a população

Uma percepção do Instituto Sou da Paz, comprovada pela pesquisa, é que o brasileiro se incomoda com as facilidades no comércio de armas entre as fronteiras. A principal delas é a divisa entre Paraguai, Paraná e Mato Grosso do Sul. ?A partir daí se dá o efeito bumerangue. Um dos países para onde o Brasil mais exporta armas é o Paraguai. Lá, elas são vendidas em inúmeras lojas perto da fronteira sem qualquer fiscalização e depois trazidas de volta ao Brasil?, explica Mariana Montoro.

As vendas chegaram a cair depois que o governo brasileiro implantou alíquotas de até 150% sobre o valor da mercadoria, que dificultaram a exportação. Mas o problema não acabou: as armas começaram a ser importadas pelo Paraguai de outros países, e o Brasil continuou a recepcioná-las. ?Para piorar, hoje briga-se contra as alíquotas brasileiras?, lamenta a diretora, destacando que isso afeta drasticamente as vendas da indústria bélica nacional. ?A solução seria criar um trabalho internacional que convença países exportadores a não vender armas para aqueles onde elas são revendidas sem rígidos controles. O argumento para isso é que a população quer restrições ao comércio mundial de armas.? Segundo Mariana, atualmente não existem tratados internacionais sobre o assunto.

Fácil acesso

Outro ponto da pesquisa que a diretora destaca é a facilidade de se obter uma arma de fogo no País, atribuído ao grande número de armas em circulação no Brasil – estimado em 17,5 milhões. ?Em 2003, o Estatuto do Desarmamento foi o primeiro passo para fechar essa torneira. Até então, era relativamente fácil comprar uma arma; hoje, é mais restrito e rigoroso. Mas leva tempo até sentirmos o efeito disso e ver esse número diminuir?, diz. Nos outros países onde a pesquisa foi feita, de forma geral, ela estima não haver tanto acesso por conta de um número menor de armas em circulação, o que implicaria também no fato de menos pessoas demonstrarem ter tanto medo de se tornarem vítimas da violência armada que no Brasil.

Assalto aumentou convicção de não ter arma em casa

K.C.B, 27 anos, foi rendida ao entrar na casa de uma amiga, junto com toda a família. Nas mãos dos assaltantes, duas armas de fogo constantemente apontadas para as vítimas. Enquanto alguns vasculhavam a casa, um cuidava dela e dos donos da residência. Foi cerca de uma hora de terror e ameaça. As balas eram mostradas para intimidar os reféns; com a pistola, o bandido demonstrava estar prestes a fazer uma roleta russa. Após carregarem o carro com tudo que encontraram pela frente, os ladrões finalmente foram embora, deixando-os amarrados e amordaçados.

Foi a primeira experiência de K. com uma arma de fogo, assim como a de 4% dos brasileiros que responderam ter sido pessoalmente afetados por uma delas, seja na forma de ameaça ou tiro, na pesquisa da campanha Control Arms. Até então, ela conta, nunca havia imaginado se tornar vítima da violência armada. ?É como uma cena de filme, quase um sonho, algo inimaginável. Me lembro do momento em que esperava eles decidirem o que iam fazer – porque, até então, você não sabe se vão achar melhor te matar. Naquele momento, eu não sentia; eu escutava as batidas do meu coração?, recorda. Além da oração, ela pensava nas técnicas de segurança que aprendeu lendo ou assistindo aos jornais: nunca reagir e fazer tudo o que eles pedissem.

Na casa, não havia uma arma para a defesa da família. ?Antes eu já pensava que arma era coisa perigosa, que podia causar muito estrago; agora, estou ainda mais convicta que não quero ter uma arma em casa?, afirma. O motivo é que, para K., se naquele dia uma arma fosse encontrada, poderia servir para machucar toda a família – ou até para um ato que causasse arrependimento: ?Se eles achassem uma, poderiam nos matar apenas pelo fato de ela estar lá e significar uma ameaça a eles. Ao mesmo tempo, se eles tivessem machucado as pessoas que são importantes para mim e eu tivesse uma arma na mão, com certeza atiraria em todos eles. Não tem como mensurar a dor; na hora, a única coisa que você quer é acabar com as pessoas que estão causando aquele sofrimento e fazê-las ter a mesma sensação?.

Para K., o que ela e muitas outras pessoas já viveram tem a ver, sim, com a falta de controle sobre o comércio de armas, mas principalmente com a falta de informação por parte da sociedade sobre como as armas podem ir além do medo e causar estragos reais: ?Acredito que se a população que votou a favor de não proibir a venda tivesse sofrido um assalto, como sofri, com certeza não compraria armas e não gostaria que ninguém comprasse?.

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