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Bolsonaro pinta na ONU retrato distorcido do Brasil em discurso para base radical

Foto: Divulgação/ Agência Brasil/ Eduardo Munoz / Reuters

O presidente Jair Bolsonaro usou o discurso de abertura da 76ª Assembleia-Geral da ONU, nesta terça-feira (21), para fazer um relato distorcido da situação do Brasil, em um aceno à sua base radical.

Havia a expectativa de que o líder brasileiro atendesse aos apelos da ala moderada do governo e fizesse um discurso de caráter mais diplomático e conciliador, o que não ocorreu. O tom de campanha prevaleceu, pontuado por dados falsos ou distorcidos.

Bolsonaro disse, por exemplo, que o Brasil está “há dois anos e oito meses sem qualquer caso concreto de corrupção”. A verdade, no entanto, é que há diversas investigações em curso envolvendo, inclusive, aliados e familiares do presidente.

Os episódios mais ruidosos incluem, por exemplo, o caso Covaxin, em que há suspeitas de corrupção no contrato bilionário entre Ministério da Saúde e Precisa Medicamentos, representante da indiana Bharat Biotech, para a compra de vacinas contra a Covid-19.

Nesse sentido, a CPI da Covid, instalada há cinco meses, apura ações e omissões do governo federal na pandemia, além de repasses federais a estados e municípios. A equipe que trabalha na comissão já levantou momentos em que Jair Bolsonaro propagou um discurso negacionista que atrapalhou o combate à crise sanitária e que teria capacidade de reunir elementos para um processo de impeachment.

Há ainda o caso das “rachadinhas”, esquema em que era recolhida parte dos salários dos funcionários de gabinete no Legislativo. Inicialmente, a prática foi identificada no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Mais recentemente, porém, surgiram indícios de que o próprio Bolsonaro, quando deputado federal, tinha uma atuação concreta no esquema.

Na ONU, o presidente também afirmou que no dia 7 de setembro o Brasil teve a maior manifestação de sua história. Outras ocasiões, como a campanha das Diretas Já (1984), os protestos de junho de 2013 e pelo impeachment de Dilma Rousseff, entre outros eventos, reuniram muito mais ativistas.

Afirmou ainda que durante a pandemia de coronavírus o Brasil pagou um auxílio emergencial de US$ 800, o que daria R$ 4.260 na cotação atual. Este foi o valor total pago em alguns casos, mas parcelado ao longo de meses, não o dinheiro que cada família teve para passar o mês.

“Sempre defendi combater o vírus e o desemprego de forma simultânea e com a mesma responsabilidade”, disse Bolsonaro, acrescentando que as políticas de isolamento e contenção dos contágios “deixaram um legado de inflação”.

Assim, o mandatário insiste em um discurso já refutado por especialistas, que apontam que um combate rigoroso ao vírus serviria de base para a retomada econômica. Pesa ainda contra Bolsonaro uma série de situações em que ele minimizou a gravidade da pandemia, referindo-se à doença como “gripezinha” e contrariando medidas sanitárias básicas, como o uso de máscaras e o ato de evitar aglomerações.

Bolsonaro também usou a tribuna da ONU para defender o tratamento precoce contra a Covid, algo que a ciência aponta não ter eficácia. Disse que ele mesmo recorreu ao procedimento e que o tempo dirá quem estava certo. Fez, ainda, uma crítica indireta às vacinas. Afirmou que, até novembro, 90% dos que “escolheram” ser vacinados serão atendidos e se posicionou contra o passaporte sanitário, a exigência de apresentar um comprovante de imunização para acessar lugares e serviços públicos. “Apoiamos a vacinação, contudo o nosso governo tem se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação relacionada à vacina.”

Na parte ambiental, disse que 84% da Floresta Amazônica está intacta e que houve queda do desmatamento em agosto, na comparação com o mesmo mês do ano anterior. No entanto, o desmatamento avançou em seu governo.

Nos cinco anos anteriores ao governo Bolsonaro, a média de desmatamento na Amazônia foi de 6.719 km2, segundo o Inpe. Já nos dois primeiros anos da atual gestão a média foi de 10.490 km2, um aumento de 56%. Os dados de 2021 serão divulgados apenas no fim do ano, mas devem ficar novamente em torno de 10 mil km2, estima o Observatório do Clima.

Embora tivesse prometido que falaria sobre a questão do marco temporal para reservas indígenas, Bolsonaro não o citou, mas afirmou que 14% do territorio brasileiro é composto por reservas, onde vivem 600 mil indígenas, e que eles “cada vez mais desejam utilizar suas terras para a agricultura e outras atividades”.

Sobre refugiados, disse que o Brasil recebeu 400 mil venezuelanos refugiados, em uma crise “gerada pela ditadura bolivariana”, sem citar o nome de Nicolás Maduro. Disse que o futuro do Afeganistão causa grande apreensão. “Concederemos visto humanitário para cristãos, mulheres, crianças e juízes

afegãos”.

Este foi o terceiro discurso do líder brasileiro na ONU. Em 2019, ele usou a tribuna para atacar críticos de sua política ambiental, a imprensa e países como Cuba e Venezuela. Em tom agressivo, que lembrava o da campanha eleitoral do ano anterior, disse que, antes de sua posse, o Brasil estava à beira do socialismo, algo que repetiu nesta terça no começo de sua fala em Nova York.

No ano passado, em discurso por vídeo (a Assembleia-Geral foi quase toda virtual, em razão da Covid), voltou a parte desses temas. Disse que o Brasil era vítima de mentiras sobre as queimadas na Amazônia e que boa parte delas seria motivada por “causas naturais inevitáveis”. Também defendeu suas ações na pandemia e acusou a imprensa de disseminar pânico sobre a doença.

A participação deste ano durou 12 minutos, a mais curta das três oportunidades. Em 2019, Bolsonaro falou durante 32 minutos, e, no ano passado, 14 minutos.

A Assembleia-Geral da ONU deste ano tem como temas a crise climática e a recuperação dos países pós-pandemia e aposta em um modelo híbrido: cerca de cem líderes farão discursos ao vivo, e outros enviaram falas em vídeo. A instituição buscou reduzir os riscos de contágio pela Covid e limitou as comitivas: cada país poderá levar apenas seis pessoas ao evento. O acesso de jornalistas foi vetado, com exceção apenas para os que possuíam escritório dentro da entidade.

Além de Bolsonaro e do presidente dos EUA, Joe Biden, estarão presentes o premiê britânico, Boris Johnson, que se encontrou com o brasileiro na segunda (20), o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, e o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. A lista dos que não viajaram para o evento inclui Emmanuel Macron, presidente da França, Angela Merkel, primeira-ministra da Alemanha, e o dirigente chinês, Xi Jinping. As falas dos líderes ocorrerão ao longo do dia.

Depois do discurso deste ano, havia a expectativa de que Bolsonaro poderia ter alguns segundos de contato com Biden, que discursou após o brasileiro —na campanha americana de 2020, ele abertamente defendeu a reeleição de Donald Trump, de quem é próximo. Os dois ainda não se falaram oficialmente desde a posse do democrata, em janeiro, mas o tempo de encontro no plenário não deve ser suficiente para mais do que um aperto de mãos ou uma conversa breve.

Não é esperada uma reunião bilateral entre Biden e Bolsonaro nesta semana, mas conversas oficiais entre ministros e secretários dos dois países estão ocorrendo. Nesta terça, por exemplo, o chanceler Carlos França se encontrará com o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken.

A imunização tem sido o principal tema da viagem de Bolsonaro aos EUA antes da Assembleia. A cidade de Nova York determina que apenas vacinados possam ir a eventos em lugares fechados e comer na área interna de restaurantes. Sem comprovante de imunização, o presidente tem optado por comer ao ar livre.

No domingo (19) à noite jantou pizza na calçada com ministros, em uma lanchonete sem mesas, e na segunda (20) almoçou em uma tenda montada do lado de fora de uma churrascaria brasileira. Ele tem evitado falar com a imprensa que acompanha a viagem.

Ativistas tem feito protestos contra o presidente. Eles estiveram na porta do hotel, em sua chegada no domingo (19). Na segunda (20), eles circularam com um caminhão pelas ruas de Nova York, com frases como “Bolsonaro is burning the Amazon” (Bolsonaro está queimando a Amazônia, em inglês).

Na noite de segunda, este caminhão foi levado até a rua onde o presidente participava de um jantar oficial. Houve um princípio de confusão entre os manifestantes e a comitiva presidencial. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, mostrou o dedo do meio ao grupo que criticava o governo.

A ONU não exigirá comprovante de vacinação dos participantes da Assembleia-Geral nem a realização de testes. Aposta em um sistema de confiança, no qual os presentes se comprometem a não estar com Covid, não ter sintomas da doença nem ter tido contato recente com infectados.

Houve ao menos um caso de Covid na comitiva brasileira. Um funcionário do cerimonial da Presidência que viajou há cerca de dez dias a Nova York para ajudar a organizar a visita teve resultado positivo em um exame no sábado (18). Não há detalhes sobre quantas pessoas estiveram com ele nos últimos dias, nem quantas delas estiveram com o infectado e depois com o presidente ou seus ministros.

Os encontros nos corredores da ONU e em reuniões paralelas são importantes para azeitar relações diplomáticas, que podem gerar acordos futuros, o que estimulou a entidade a buscar um evento presencial, apesar dos riscos. Os países de líderes que não irão ao evento deverão enviar delegações, que também participarão de encontros multilaterais.

Além de Boris, Bolsonaro se encontrou com o presidente da Polônia, Andrzej Duda, ultraconservador que vem colocando em prática medidas contra mulheres e homossexuais, pouco antes do discurso. Não foram anunciados compromissos para a tarde. Ele deve partir de volta à Brasília de noite.

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