Arquivo/O Estado |
O que muita gente questiona é se o ser humano tem direito de provocar sofrimento físico e psicológico em seus semelhantes. |
A prática da vivissecção, ou seja, da utilização de animais vivos em testes de objetivos industriais, comerciais, pedagógicos e científicos, faz parte da rotina mundial. Em qualquer lugar do planeta, dificilmente um produto – seja ele ligado à indústria farmacêutica, de cosméticos, materiais de limpeza, entre outros – é lançado no mercado sem antes ter seus efeitos testados em animais. Da mesma forma, em muitas faculdades e universidades é intenso e constante o uso de animais vivos para o aprendizado tanto da medicina humana quanto da veterinária.
Porém, o que muita gente questiona é: tem o ser humano o direito de provocar o sofrimento físico e psicológico de seus semelhantes com a finalidade de obter benefícios próprios? A resposta à esta pergunta gera uma série de polêmicas e divergências entre integrantes da comunidade científica, professores, estudantes, empresários, representantes de organizações não governamentais de proteção e defesa animal e amantes dos bichos. Prova disso é que, no último mês de abril, na cidade do Rio de Janeiro, chegou a ser aprovado um projeto de lei proibindo a realização de qualquer tipo de vivissecção. Porém, dias depois, o documento acabou sendo vetado pelo prefeito César Maia (PFL-RJ).
Na ocasião do lançamento do projeto, o autor do mesmo, o vereador Cláudio Cavalcanti (PFL-RJ) – que já obteve a sanção de outras leis voltadas à proteção animal – considerou o sofrimento de gatos, coelhos, macacos, camundongos, répteis e outros animais mantidos em laboratórios como algo inaceitável, apontando a existência de métodos alternativos. Como conseqüência, obteve uma série de críticas e a declaração de muitos cientistas, como por exemplo a do coordenador do Centro de Experimentação Animal do Instituto Oswaldo Cruz, Carlos Muller, de que, ao menos na área da pesquisa científica, proibir repentinamente o uso de animais seria impossível.
Maiores abusos são na área industrial
Lucimar do Carmo/O Estado |
Frente para Abolição da Vivissecção é contra manutenção de animais em gaiolas. |
Na capital paranaense, a polêmica ainda não chegou a se configurar como algo tão grande. Porém, o assunto preocupa e é de interesse de profissionais da área de Medicina Veterinária e integrantes de organizações não governamentais. Segundo o advogado e integrante da ong Clube da Pulgas, presente há quatro anos em Curitiba, César Valeixo, os animais vêm sendo utilizados em experiências há séculos. Porém, atualmente, com a maior consciência dos humanos de que os bichos também são seres independentes, passíveis de dor e sofrimento, a tendência é de que a vivissecção seja realizada em quantidade cada vez menor e só em casos de extrema necessidade. "O ideal é que o uso de animais seja substituído por métodos alternativos. Se isso não for possível, a participação dos bichos nos experimentos deve ser pelo menos reduzida", diz.
Na opinião da presidente da comissão de ética no uso de animais do setor de Ciências Agrárias da UFPR e coordenadora do Laboratório de Bem-Estar Animal (Labea) da instituição, professora Carla Forte Maiolino Molento, é impossível impedir completamente o uso de animais em laboratórios com objetivos de avanço no conhecimento. Entretanto, é viável minimizar o sofrimento dos bichos durante a realização dos experimentos. "Infelizmente, para testar o potencial de determinadas drogas e a reação provocada pelas mesmas, ainda não temos métodos que substituam totalmente o uso de organismos vivos. Por isso, acredito que não há como proibir as pesquisas, mas defendo que o sofrimento imposto aos animais seja o mínimo possível, que a eutanásia seja realizada só em último caso e de maneira humanitária", afirma.
Lucimar do Carmo/O Estado |
Carla Molento: é impossível impedir, mas é viável minimizar sofrimento dos animais. |
Carla e César concordam que os maiores abusos ocorrem na área industrial. "Já existem comitês que controlam a vivissecção na área de ensino e pesquisa (onde a prática pode ser substituída, por exemplo, pela exibição de vídeos e apresentação de pesquisas já prontas). Para o setor industrial, existem normas regulatórias para utilização de animais, mas ainda falta estrutura para fazer com que elas sejam realmente cumpridas", declara o advogado. "Muitas vezes, as indústrias já sabem quais os efeitos de determinadas substâncias, mas continuam as testando em animais". Estes testes geralmente são condenados porque são realizados apenas para comprovação ou demonstração de fenômenos já conhecidos e não para a aquisição de conhecimentos novos.
A professora defende a idéia de que as coisas só vão mudar realmente quando a população se revoltar e deixar de comprar artigos cuja linha de produção envolve testes em animais. Ela explica que as pessoas geralmente se chocam quando sabem, por exemplo, que determinados produtos de limpeza são pingados nos olhos de coelhos até os levarem à cegueira, mas geralmente não fazem nada para evitar que isto deixe de acontecer. "Já é possível encontrar no mercado produtos que levam um selo informando de que os mesmos não são testados em animais. Porém, se o consumidor tem dúvidas, também deve ligar para o número 0800 das empresas e pedir informações. Os animais não têm como fazer sua voz valer. Por isso, quem tem que pensar neles somos nós, que os temos em nossas mãos", finaliza Carla. (CV)
Entidade luta pelo fim dos experimentos
A idéia de criar a frente partiu da tradutora e intérprete Rosely Bastos, que há anos estuda o assunto e hoje ocupa o cargo de presidente da entidade. Ela define a vivissecção como algo cruel e acredita que, ao contrário do que dizem alguns representantes da comunidade científica, a prática pode ser eliminada em todos os segmentos sem grandes prejuízos aos seres humanos.
"Já existem métodos alternativos em todos os segmentos. Ao contrário de outras organizações não governamentais de proteção animal, não trabalhamos para que os animais sejam mantidos em boas gaiolas ou recebam tratamento digno nos laboratórios. Queremos é que a presença dos bichos seja abolida de vez dos centros de pesquisa, onde eles são manipulados como lixo e não têm o direito à vida respeitado", explica.
Na visão de Rosely, a vivissecção, além de ser algo maléfico aos animais, também é uma prática que gera riscos à saúde dos seres humanos. Ela afirma que existem pesquisas internacionais que comprovam que cada organismo vivo reage de forma diferente a uma determinada droga, tratamento ou substância química. Desta forma, as experiências envolvendo bichos seriam totalmente desnecessárias. "Como seres humanos, nós somos as principais vítimas da prática. A vivissecção representa um perigo à nossa saúde, pois nosso organismo não reage da mesma forma que o organismo de outros seres vivos". (CV)
A realização de testes com animais costuma gerar tanta indignação que, no ano de 1993, foi fundada no Rio de Janeiro a Frente Brasileira para Abolição da Vivissecção. A entidade, que se caracteriza como uma organização sem fins lucrativos, tem como objetivo promover a abolição total das experimentações animais no Brasil.