Em 14 de outubro de 1950, pouco mais de três meses após o início da Guerra da Coreia, forças das Nações Unidas se preparavam para o que foi noticiado como “assalto final” contra Pyongyang, capital da Coreia do Norte. Nesse mesmo dia, Lee Jung-hoon, aos 14 anos, se preparava para fugir do país com o irmão, Lee Dong-baik, de 22 anos. A fuga foi realizada com sucesso e hoje, quase 70 anos depois, ele mora em São Paulo, no Bom Retiro.
Na última semana, o líder norte-coreano, Kim Jong-un, recebeu o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, para discutir a realização de uma segunda cúpula entre Coreia do Norte e Estados Unidos. Assistindo à reaproximação de Pyongyang com Seul e Washington, Lee revelou que ainda tem esperança de que a unificação aconteça. “É o mesmo povo”, disse.
Aos 82 anos, o senhor coreano fala pouco português, mora sozinho e diz que um dos poucos prazeres de sua vida é comer. Seu irmão mais velho ficou na Coreia do Sul, os três filhos estão espalhados pelo Brasil e a mulher morreu há dez anos. Ele relembra o dia em que fugiu de casa com o irmão, mostrando um recorte de jornal daquela data. Os dois filhos de uma família rica de Pyongyang disseram aos pais que voltariam em quatro dias, mas nunca retornaram.
A Coreia do Norte havia completado dois anos de sua fundação no mês anterior, mas seus habitantes já buscavam refúgio do outro lado da fronteira. “Todos foram para o sul, sempre acompanhando alguém. Fugiam com a mãe, com um irmão, com uma irmã mais velha”, relembra. “A gente se encontra em Seul. Não se preocupe”, disse o irmão, que era como um segundo pai para ele. A ordem foi obedecida. Ele saiu de casa sozinho e caminhou até o Rio Taedong, que divide Pyongyang. As pontes estavam fechadas por causa da guerra e quem quisesse atravessar precisaria entrar em algum tipo de embarcação.
O coreano tentou entrar em um cargueiro, mas o porto estava lotado. Forças de segurança tentavam conter a multidão. “Estavam disparando tiros”, disse. Uma grávida caiu no rio em meio à confusão. Ele também foi empurrado, mas conseguiu se segurar na lateral da embarcação e subiu. Quando chegou do outro lado, o destino seguinte era a estação de Taedonggang, onde subiu no teto de um dos vagões de um trem de carga, ajudado por um senhor. A viagem era perigosa. Lee conta que seu colega de viagem, sentado de costas para o trem, não viu a chegada de um túnel e morreu esmagado. Neste momento, o coreano diz ter percebido que “tinha de viver de qualquer jeito”.
A viagem de trem durou quatro dias, durante os quais se alimentou de arroz e pequenas refeições que comprou com suas economias. Ao chegar em Seul, demorou outros quatro dias para achar o irmão. Eles haviam combinado de se encontrar no escritório de um conhecido. Mais tarde, descobriram que haviam feito a viagem no mesmo trem, mas tinha tanta gente que não se viram durante o trajeto.
Com a viagem feita, restava aos dois começar a vida em um novo país. Foram para um campo de refugiados, onde recebiam arroz e sal. Depois, se mudaram para Daejeon. Lee trabalhou como vendedor de rua, engraxate, carregou mercadorias para restaurantes.
O irmão mais velho era membro do Exército norte-coreano e entrou para o serviço militar na Coreia do Sul. Ele voltou a estudar e, aos 22 anos, seguiu os passos do irmão, entrando para o Exército, onde ficou por quase dez anos. Como militar, ele tinha onde dormir e o que comer. Na Coreia do Sul, formou-se em administração e viveu no país pelos 42 anos seguintes, período em que se casou e teve filhos.
Em 2000, Lee se mudou com a família para Assunção, no Paraguai, onde ficou por três anos antes de se mudar para São Paulo, onde estabeleceu um comércio de roupas no Bom Retiro.
Da saída de Pyongyang até a chegada no Bom Retiro, quase 68 anos se passaram. Em 2018, quando a Coreia do Norte comemorou 70 anos desde sua fundação, Lee viu pela televisão as reuniões entre famílias separadas pela guerra. Apesar de ter deixado os pais para trás, ele não se arrepende da decisão, mas tem vontade de saber o que aconteceu com sua família e visitar o túmulo dos pais.
Ele ainda guarda sua árvore genealógica e aponta para os parentes do pai, que era o terceiro de quatro irmãos. No topo do papel, há um endereço – o local onde os antepassados moravam. Lee já se inscreveu para participar das reuniões familiares antes, mas não foi sorteado. Diz que tentará novamente no ano que vem e, caso seja chamado, é o endereço no topo do papel que o conduzirá.
As chances são difíceis. Neste ano, mais de 57 mil sul-coreanos se registraram para os encontros entre famílias e apenas 330 foram sorteados. Mas ele não se desanima diante das poucas chances de reencontrar sua família ou mesmo da rara probabilidade de que a reunificação aconteça.
Apesar de reconhecer a dificuldade diplomática que envolve a situação dos dois países, Lee tem esperança de ver as Coreias unificadas.
“O povo coreano nunca foi consultado (sobre a separação)”, disse. “Se vou para o Sul como soldado e me mandam entrar em guerra, não consigo atirar. Quem está do outro lado pode ser um primo.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.