Além de amigos e companheiros, eles são tidos como os olhos das pessoas que não enxergam. Entre as muitas atividades que os cachorros desempenham, a de cão-guia de cegos é uma das mais reconhecidas e valorizadas pela sociedade.
O treinamento de cães-guias surgiu na cidade de Viena, na Áustria. Porém, foi no ano de 1916, com a criação de uma escola de adestramento na Alemanha, que a técnica começou a ser difundida por toda a Europa e também nos Estados Unidos.
No Brasil, os primeiros adestramentos aconteceram na década de trinta, mas ainda hoje a utilização do cão-guia não se popularizou. Segundo o adestrador Eduardo Marinho – que há cerca de três anos trabalhou com treinamento de cães-guias na cidade do Rio de Janeiro – dos cerca de 16 milhões de deficientes visuais existentes no País, uma média de vinte substituíram a bengala pelo cão.
"Isso acontece principalmente devido à pequena quantidade de adestradores brasileiros especializados no treinamento de cães-guias. Assim, os deficientes visuais acabam tendo que adquirir o cachorro na Alemanha ou nos Estados Unidos. Apesar de nestes locais a maioria dos animais serem doados, muitas pessoas não têm condições de arcar com os custos da viagem, sendo que é necessário fazer treinamento para aprender os comandos dados ao cão", explica.
Raças
As raças que melhor se adaptam à atividade são o Labrador, o Golden Retriever, o Bernese Mountain Dog e o Pastor Alemão (veja o quadro). Antes de os animais começarem a ser adestrados, o que geralmente acontece a partir do segundo ou terceiro mês de vida, uma série de características devem ser observadas. De cada ninhada, são eleitos apenas os animais mais dóceis, ágeis, de fácil sociabilização, saúde perfeita e isentos de Displasia Coxo Femural (desenvolvimento ou crescimento anormal da articulação coxo femural, que gera dificuldades de locomoção).
O adestramento dura de oito meses a um ano. Os cães aprendem a detectar e desviar obstáculos, a utilizar o arreio (através do qual são comandados) e mesmo a olhar para os dois lados antes de atravessar a rua, sendo condicionados a parar quando um objeto em movimento vem em sua direção. Em serviço, os cães-guias se posicionam sempre ao lado esquerdo do corpo de seus proprietários, iniciando o trajeto sempre que estes começam a caminhada com a perna esquerda.
"O adestramento é feito à base de muito carinho e paciência. Depois que ele termina, começa o treinamento junto ao deficiente visual, que aprende os comandos dados ao cão e inicia a sociabilização com o animal", informa Eduardo. "Para ter um cão-guia, a pessoa precisa gostar de cachorro. Caso contrário, o animal, apesar de não morder, não será um bom companheiro".
Tanto cães machos quanto fêmeas podem ser escolhidos para guias, mas geralmente as fêmeas possuem temperamento mais dócil e são menos sujeitas a apelos sexuais. Para desenvolver a atividade, representantes de ambos os sexos devem ser castrados. Isto evita que eles se distraiam durante o serviço.
Animal treinado acompanha na faculdade e no restaurante
A jornalista Danieli Haloten, de 25 anos, perdeu a visão ainda criança, aos dez anos de idade. Há cinco anos, ela encontrou a solução de parte de seus problemas ao adquirir um cão-guia – uma fêmea da raça Labrador. O animal passou a acompanhá-la em grande parte de suas atividades, estando presente até mesmo em sua solenidade de formatura.
"O cão não resolve todos os problemas, mas a bengala não me permite fazer tudo o que faço na companhia do cão. Ela não me dá a mesma segurança", diz. "Com o cachorro, adquiri muita independência e, além de tudo, ganhei um amigo".
Há cerca de um ano, o Labrador da jornalista ficou doente e morreu. Ela teve dificuldade para se adaptar novamente com a bengala e, há pouco mais de um mês, foi para Nova York receber treinamento com outro cão. Hoje, ela têm um novo animal: um macho originário da mistura entre as raças Labrador e Golden Retriever, que está com um ano e meio de vida.
"Quando meu cão morreu, eu não sabia se a dor era maior pela perda do companheiro ou pela do guia. Agora, eu e meu novo cão ainda estamos nos conhecendo, mas já nos afeiçoamos bastante um ao outro. Ele tem se comportado muito bem e cumprido com eficiência sua função", revela.
Danieli conta que nunca se acidentou na companhia dos cachorros. Apenas uma vez, quando seu primeiro cão ainda era vivo, ela bateu em um orelhão enquanto estava sendo guiada. Porém, o problema foi logo resolvido. "O cão havia sido treinado nos Estados Unidos e lá as cabines telefônicas são diferentes. Depois que tive o problema, ensinei o animal e nunca mais aconteceu. Os cães-guias são treinados a base de muito carinho".
Danieli já teve problema para entrar com seu animal em restaurantes e cinemas. Porém, o que mais a incomoda é que a maioria da população ainda não sabe se comportar diante de um cão-guia. Ela conta que, em locais públicos, é muito comum que as pessoas queiram brincar com o animal, distraindo-o do trabalho. Formada pela PUCPR, ela lembra que teve muitos transtornos na época da faculdade. "No trajeto até a sala de aula, dezenas de pessoas me paravam e pediam para brincar com o meu cachorro. Se eu deixasse, não chegava no horário da aula nunca. Acho que ainda falta um pouco de consciência para a maioria das pessoas", comenta. Atualmente, Danieli é a única pessoa em Curitiba a utilizar um cão-guia. (CV)
ONG promove adestramento
No Brasil, a única entidade a promover o adestramento de cães-guias é a organização não governamental Integra (Instituto de Integração Social e de Promoção da Cidadania), que tem sede em Brasília (DF). Tudo começou em 2001, quando três integrantes do instituto – fundado há cinco anos – foram realizar um curso de adestramento de cães para cegos na Fundação Mira, na Alemanha. Daquele país, eles trouxeram quatro animais da raça Labrador, que foram doados pela Fundação e treinados no Brasil.
Atualmente, o Integra tem dez animais com usuários, todos moradores de Brasília. Os cães nascem na organização e, durante dez meses, ficam sob os cuidados de uma família hospedeira, que se encarrega de sociabilizá-los. Após este período, os filhotes passam por avaliação técnica e de saúde, são selecionados para a função de cão-guia e levados a adestramento. Após treinados, os cães são doados aos deficientes visuais, que entram em contato com o instituto e também passam por um processo de seleção. "Avaliamos se a pessoa gosta de cachorro e se está disponível para realizar treinamento e aprender os comandos necessários para utilizar o animal", revela o coordenador técnico do projeto Cão-Guia do Integra, Carlos Alberto Dias.
Até agora, os cães adestrados foram destinados apenas a deficientes visuais que vivem no Distrito Federal. Porém, até fevereiro do próximo ano, a organização pretende fazer a doação de cães para pessoas que vivem em outros estados. A idéia inicial é de que essas pessoas viajem até Brasília para fazerem treinamento e que, posteriormente, um instrutor vá com elas até suas cidades para realizar adaptação do animal aos novos trajetos. Mais informações sobre o projeto: caoguiadf@ibestvip.com.br.
Quartz
Um cão-guia adestrado pelo Integra acabou virando estrela de TV. O nome dele é Quartz, um Labrador de cinco anos de idade, que é o fiel companheiro do personagem Jatobá, vivido pelo ator Marcos Frota, na novela América. O animal foi emprestado pelo Instituto à Rede Globo com o intuito de divulgar o projeto Cão-Guia e também combater o preconceito que ainda aflige os deficientes visuais. Para contracenar com o cachorro, Marcos Frota passou pelo mesmo treinamento que os cegos realizam antes de receberem e utilizarem o guia. (CV)
É lei! Com carteirinha e vacinas em dia, cães têm livre acesso a locais públicos
Muitas das pessoas que possuem cães-guias têm dificuldades para entrar com seus animais em locais públicos. Entretanto, em 29 de abril de 2003, um decreto federal regulamentou a Lei 2.996/2002, que permite o livre acesso dos cães em bares, restaurantes, cinemas, teatros, estabelecimentos comerciais, ônibus e outros lugares.
Para isto, basta que o portador de deficiência física tenha uma carteirinha que identifique seu cachorro como guia e que o animal esteja com todas as vacinas em dia. Os estabelecimentos que criam empecilhos para a entrada do cão ficam sujeitos à multa e, dependendo da gravidade do ato, até interdição.
O adestrador Eduardo Marinho explica que, na grande maioria das vezes, os responsáveis pelos estabelecimentos nos quais os cães se fazem presentes não precisam se preocupar com a presença dos animais. Eles costumam ficar quietos ao lado de seus donos e recebem alimentação em horários especiais, não fazendo suas necessidades fisiológicas durante o serviço. (CV)
