A vida nas mãos da Justiça

Avaliar se uma pessoa deve ou não continuar vivendo, mesmo que esteja sofrendo muito ou não tendo perspectivas de recuperação, é bastante complicado. O mundo inteiro ficou abalado nas últimas semanas com o caso da norte-americana Terri Schiavo, que teve a alimentação cortada depois que seu marido conseguiu na justiça autorização para Terri morrer. Vivendo em estado vegetativo permanente depois de uma parada cardíaca em 1990, Terri teria manifestado o desejo de morrer caso um dia se encontrasse numa situação semelhante. Apesar de polêmico, o assunto gera pelo menos uma unanimidade entre os especialistas: o que aconteceu com Terri Schiavo não foi eutanásia e sim uma crueldade realizada com o aval da justiça.

Dálio Zippin, membro da comissão nacional de direitos humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), disse ter ficado chocado com o caso Terri. ?Não foi eutanásia o que foi feito. Retirar a alimentação da paciente foi uma solução hipócrita adotada pela justiça norte-americana. Seria mais honesto se abreviassem a vida dela dando uma injeção letal e não a deixarem agonizando por dias?, afirmou.

É que, de acordo com as leis norte-americanas, não se admite que a vida de uma pessoa seja tirada. A única brecha existente para atingir o mesmo objetivo é a retirada da alimentação. Zippin explica que países como a Holanda, Bélgica e França já enfrentaram problemas semelhantes e hoje já admitem a eutanásia.

No Brasil, a prática não é permitida. ?São aceitos apenas dois tipos de morte: a natural ou a causada por homicídio?, explica. No entanto, Zippin afirma que a prática de se decidir pela prolongação ou não do sofrimento de doentes acontece diariamente nos hospitais.

?A questão da eutanásia gera uma dualidade. Eu, como defensor dos direitos humanos, deveria defender a manutenção da vida a qualquer preço. Mas, por outro lado, entendo que quando não há possibilidades de manutenção de uma vida digna, não há por que prolongar o sofrimento do paciente. No entanto, uma junta médica deve dar esse parecer?, afirma.

Para Zippin, apesar de não haver precedente de polêmicas semelhantes no Brasil, o País terá de enfrentar o problema em curto espaço de tempo. ?Casos como legalização do aborto, liberação da maconha e eutanásia terão de ser repensados. Hoje o Brasil apenas tampa o sol com a peneira. É preciso discutir essas questões e a legalização disso só vai contribuir para enfrentar os problemas?, afirma.

Pároco mostra preocupação

O padre Ricardo Hoepers, pároco da igreja São Francisco de Paula e formado em bioética, vê com preocupação o precedente aberto com a morte de Terri Schiavo. ?O que aconteceu com a Terri foi um caso típico de uma sociedade permissiva e utilitarista. Hoje, está se ?coisificando? o ser humano. As pessoas estão se tornando objetos descartáveis. Isso é preocupante?, destaca.

Para o padre, a igreja católica defende a dignidade da pessoa humana e, sob esse aspecto, é contrária à retirada da vida. No entanto, em casos de pacientes terminais, com morte cerebral, por exemplo – quando se sabe que a manutenção da vida é apenas mecânica – o padre afirma que não há sentido de continuar sustentando a situação. ?Mas a eutanásia da maneira que se coloca é uma omissão. Simplesmente deixa-se de dar remédios para alguém ou cortam-se os meios vitais como a alimentação. Isto é desumano e cruel?, afirma.

Com o avanço da biotecnologia, o padre acredita que todos os países enfrentarão a questão da eutanásia. Para ele, as novas descobertas no setor da medicina trarão diversos problemas éticos para as questões do início e do fim da vida. (SR)

Distanásia: o caminho inverso

Para o cirurgião torácico cardiovascular Paulo Roberto Soltoski, durante toda a polêmica gerada pelo caso Terri Schiavo falou-se muito em eutanásia e não se discutiu o oposto dela: a distanásia. Soltoski explica que distanásia significa prolongar de maneira inadequada e dolorosa a vida de uma pessoa. ?Não há sentido prolongar a vida de uma pessoa quando se sabe que ela não terá chances de se recuperar. O médico tem que fazer de tudo para manter a vida de um paciente, mas, ao mesmo tempo, não esquecer da dignidade humana e do direito que as pessoas têm de morrer?, explica o médico.

Apesar de ser favorável à eutanásia, Soltoski não concordou com o procedimento adotado no caso de Terri. ?Foi distanásia o que aconteceu com a Terri por 15 anos. Deixaram a paciente viver num estado péssimo por tanto tempo e depois decidiram aliviar o sofrimento de uma maneira cruel, retirando a alimentação?, afirma. Soltoski explica que nunca esteve envolvido numa solicitação de eutanásia, mas que, diariamente, enfrenta um problema muito maior, que é a distanásia. Segundo ele, o dilema é justamente saber avaliar o limite de se manter ou não um paciente sofrendo quando não há mais chances de vida digna futura. ?Nas escolas de medicina, aprendemos que se deve manter a vida de qualquer maneira e aliviar a dor. Mas ninguém ensina como pensar, saber avaliar situações delicadas e, principalmente, deixar morrer?, explica. Ele diz que se trata da avaliação médica da situação do paciente. ?Nunca um médico pode levar em conta o ônus que a situação de um paciente terminal está trazendo para os familiares. Por isso a decisão de manter ou não um quadro de sofrimento inútil deveria ter partido do próprio paciente, enquanto lúcido. Esta é uma situação chamada nos EUA de ?advance directives?, ou seja, orientações do próprio paciente sobre o que fazer quando sua situação clínica piorar. Mas nossa cultura latina não aceita esse tipo de situação e ainda vai demorar muito para que se torne rotina adotar uma postura a esse respeito?.

Tecnologia

Com o avanço da medicina, é possível prolongar por meses a vida de uma pessoa em unidades de terapia intensiva (UTIs), com remédios fortes e potentes. Soltoski afirma que muitos pacientes que acabam numa UTI jamais deveriam ter sido internados nela quando se sabe que a manutenção daquela vida será puramente mecânica. ?Há 50 anos, quando não havia toda esta tecnologia, casos assim não aconteciam. As coisas eram como Deus queria. Hoje é que estamos desvirtuando o curso natural da vida?, diz.

No entanto, Soltoski afirma que é preciso ter cuidado ao se falar isso. Não se trata de brincar de deuses e sim saber avaliar se a postura adotada é a correta. ?O médico precisa ter discernimento para saber se está fazendo um bem ou não. Não prolongar o sofrimento de um paciente não significa matar e nem é suicídio. Sem dúvida alguma, essa pessoa ainda vai para o céu.? (SR)

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