?Vocês, juízes, têm de me ouvir!? Piero Calamandrei

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Eu sei que seria melhor omitir-me, calar-me, porque estou certo de que dois colegas de toga, pelo menos dois, vão ficar aborrecidos comigo, ao ler estas linhas. Mas eles também me deixaram muito triste e decepcionado, ao se mostrarem inexplicavelmente arrogantes, em determinado episódio que vou relatar, contrastando sua atitude com aquela humildade e compaixão humanas que devem orientar todos os atos da vida de um magistrado.

Estou convencido de que o autoritarismo mais nefasto e desprezível, a prepotência mais cruel e revoltante que pode haver é aquela silenciosa e despótica omissão do juiz.

Pois bem. Era verão e eu estava na praia. O celular soou, interrompendo descontraída prosa com meus amigos, em frente ao mar. Do outro lado da linha, uma senhora relatava, em prantos, que seu marido havia sido preso ao comprar flores em um supermercado de Curitiba. O fato é um tanto nebuloso. Seu marido, na companhia de duas filhas e do neto, tinha ido fazer compras para reabastecer sua pequena floricultura e, no momento em que, já no pátio, passava o produto dos carrinhos para seu veículo, chegaram os seguranças e o levaram de volta ao interior do supermercado, dizendo que, além de ter trocado as etiquetas de preços das flores, ele estava surrupiando dois livros de doutrina espírita. Assim, o valor da compra não era de apenas R$ 36,00 (Isso mesmo: trinta e seis reais!), porém R$ 262,00, no total. Policiais chegaram rapidinho e, depois de abraçarem fraternalmente seus amigos seguranças, levaram preso o infeliz. Não adiantou dizer que nada sabia sobre os livros, e que nem espírita é, mas evangélico de carteirinha, nem trabalha com venda de livros, e que seu negócio é venda de flores…

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Voltemos ao telefonema. Que poderia eu fazer por aquela gente humilde, se estou aposentado da magistratura e não exerço a advocacia? Além de tudo, estava descansando a mais de cem quilômetros de distância… Doutor, disse a esposa e, depois, a filha, chorando, o senhor é nossa única esperança, pois estamos desesperadas e não temos a quem recorrer.

Sensibilizado com a situação aflitiva dessas pessoas de poucos recursos e conhecendo a família há muito tempo, com estabelecimento comercial no mesmo endereço faz anos, resolvi tentar ajudar. Telefonei ao juiz de plantão e, depois de me apresentar, contei-lhe a história triste e perguntei se ele não poderia reapreciar seu despacho denegatório do habeas corpus mal-enjambrado, que fora impetrado por um bacharel inexperiente. Minha intervenção foi desastrosa! O juiz interpretou como se eu estivesse criticando a atuação dele no processo. Disse ser um magistrado honesto e consciente do que faz. Então, expliquei a Sua Excelência que eu apenas conhecia o dono da floricultura de que era freguês e sabia ser um homem de bem, trabalhador, pai de família e avô dedicado. E que eu não estava, absolutamente, criticando seu trabalho (do juiz), sendo apenas mensageiro da aflição de mãe e filha inconformadas, que, além de tudo, não têm condições de contratar um bom advogado. Meu pedido não encerrava crítica, mas compaixão.

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Gastei em vão meu latim. O pobre homem continuou na cadeia, enquanto a família vivia um pesadelo kafkiano. Por que estavam fazendo isso com ele? Por que ?plantaram? os dois livros entre suas compras? Talvez para dar mais verossimilhança à acusação de alteração das etiquetas? As filhas e o neto eram testemunhas de sua inocência. Estavam juntos, o tempo todo. Ou seriam todos cúmplices? Teriam ido ao supermercado furtar livros de doutrina espírita?

Muita coisa passou por minha cabeça. Fiquei imaginando se a empresa, de grande porte, não teria ganho mais dividendos políticos e sociais doando, pelo sim, pelo não, ditos livros ao infeliz, em vez de valer-se de seu poderio econômico para trancafiar um trabalhador não um vagabundo por causa de suposta Tentativa de furto de objeto de valor insignificante. Quanto ao pedido mal formulado, será que não existe mais aquele princípio da fungibilidade ou o da instrumentalidade das formas? E o princípio da insignificância (R$ 36,00!), será que foi jogado no lixo? Há um clamor popular para que a Justiça livre-se das peias do formalismo para tornar-se mais humana.

Outro pensamento me assaltou, naquela noite em que não dormi, enquanto o florista estava na cadeia, na companhia de bandidos de verdade. Se a pessoa envolvida no episódio tivesse sido uma madame da sociedade, será que o tratamento teria sido o mesmo? Quase estou a ouvir a abordagem do segurança, todo cheio de rapapés… Desculpe, minha senhora, mas será que a senhora não estaria levando, por engano, dois livros? Não me leve a mal, mas parece que, de alguma forma, esses livros vieram junto com suas flores…?

Pensei também na providencial inércia da polícia, que tem centenas de milhares (!) de mandados de prisão não cumpridos, já que não há vagas nos presídios. Mas como é que, para o suspeito de furtar bagatelas, sempre se encontra um lugarzinho?

Voltemos à praia. De novo, em frente ao mar. Conversa animada, expus o fato a um jovem colega da ativa. Súbito, exaltou-se, ofendido, comprando a briga, e começou a gesticular e dizer que também não gosta que lhe peçam para olhar ?com carinho? um processo, pois ele é juiz cuidadoso e não precisa que ninguém lhe mostre como fazer seu trabalho… E ?carinho? ele não emprega em relação a homem nenhum!

Meu Deus! Que decepção! E eu, que o tinha em alta conta e o considerava um juiz justo, além de humano e misericordioso, por causa de campanhas sociais em que anda envolvido! E que machismo insensato, que bobagem, essa história de só usar ?carinho? em relação a pessoas do sexo feminino! Será que ele não tem filho homem? Que arrogância, que falta de compaixão para com a miséria humana! Ora, se o magistrado se ofende com um pedido tão singelo, é porque não tem tanta segurança de sua sabedoria e independência…

Senhor juiz! Quero fazer-lhe um pedido: não deixe nunca de escutar a súplica dos miseráveis! Tudo foi tirado deles, só lhes resta a fé na justiça. Você é a derradeira esperança dessa gente desvalida! Dispa-se, pois, de toda a arrogância e envolva-se na alva túnica dignificante da humildade, para ouvi-los com benevolência. Não os decepcione, pois, Excelência!

Albino de Brito Freire é juiz de Direito aposentado.