A origem do dia da mentira

O primeiro dia do mês de abril, considerado como o dia da mentira e das pilhérias, é uma tradição de origem francesa. Provém do fato de que, até meados do século XVI, o ano novo, entre os franceses, era comemorado no primeiro dia de abril. De fato, nos tempos do reinado de Carlos Magno (771-814; rei 768), o ano começava em 25 de março, próximo ao equinócio da primavera, no dia da Anunciação, nove meses antes do nascimento de Jesus Cristo. Durante o Concílio de Reims, em 1235, o emprego do equinócio da primavera para a mudança do ano era designado “de uso francês”. Em conseqüência, os presentes e votos de felicidade eram trocados durante a passagem de ano no início de abril. Na realidade, no momento da reforma juliana, no ano 708 da fundação de Roma (45 a.C.), Júlio César (101-44 a.C.; grande pontífice 63 a.C.) determinou que o calendário romano, com início em primeiro de março, tivesse a sua origem deslocada para primeiro de janeiro, data que coincidia com o equinócio da primavera no hemisfério norte. Apesar de as nações ocidentais, submetidas ao domínio romano, terem adotado tal procedimento, vários povos, dentre eles os franceses, tiveram dificuldades em absorver essa alteração. Com a reforma juliana, o início do ano passou para primeiro de janeiro, condição que foi aceita lentamente por todas as nações ocidentais submetidas ao (ou sob influência do) domínio romano. No entanto, mesmo após terem adotado a reforma de César, uma longa divergência subsistiu com referência à origem do calendário juliano.

Uma das grandes dificuldades em se adotar o ano novo no início de janeiro foi provocada pela resistência das autoridades eclesiásticas, que relutavam em aceitar e comemorar a origem do ano num mês que tinha o nome de uma divindade pagã, Janus. O ano histórico com origem em primeiro de janeiro, em analogia ao ano civil romano, foi usado até o século VI. Alegações de natureza religiosa sobre as suas conotações pagãs levaram as autoridades católicas ao estabelecimento do calendário cristão, designado em latim como Annus Gratis (Ano da Graça) ou Annus Domini (Ano do Senhor), cuja elaboração deve-se ao monge, teólogo e historiador Beda, o Venerável (672-735), que empregou a Tábua Pascal Dionisíaca, compilada por volta de 525. Esse ano foi usado em quase todos os países cristãos da Europa Ocidental, exceto a Espanha.

Para origem do Ano da Graça, alguns povos adotaram o Natal, a Anunciação ou a Páscoa. Outro fator que deve ter contribuído para que o dia da mentira fosse no início de abril, foi o fato de a Páscoa oscilar entre os dias 22 de marco e 25 de abril. Em conseqüência, o ano variava continuamente de extensão provocando confusões entre os cronologistas, como por exemplo no ano de 1347, que começou na Páscoa de 1.º de abril e terminou na Páscoa subseqüente, ou seja, em 20 de abril de 1348. Desse modo, o ano de 1347 teve dois meses de abril quase completos. Tal procedimento, de uso geral nos século XII e XIII, foi ainda adotado em algumas províncias francesas até o século XVI.

Em 1564, o rei da França, Carlos IX (1550-1574; rei 1560), decretou que o ano começaria a ser contado a partir de primeiro de janeiro, em obediência ao calendário juliano, adotado por Júlio César. Desta data em diante, os presentes e votos de feliz ano novo, que eram trocados no início de abril, passaram a serem oferecidos na nova data. Mais tarde, em 1567, com a transferência efetiva do começo do calendário para primeiro de janeiro, surgiram as célebres brincadeiras próprias do primeiro de abril, dia no qual se passou a oferecer aos amigos presentes falsos e/ou pregavam-se peças aos colegas para comemorar a antiga data de mudança do ano novo. Todavia, em recordação à tradicional e antiga festa de abril, esta data continuou a ser comemorada de uma maneira muito particular: os povos continuaram a dar falsos presentes, para simular a comemoração de uma falsa festa, durante a qual era normal uma série de atos mentirosos e mistificações. Entre os franceses, nesse dia era comum fixar nas costas das pessoas distraídas, uma tira de papel, como sinônimo de uma farsa ou brincadeira. Desde, então, tais alusões de natureza zombeteira eram denominadas “peixes de abril”, poissons d’avril em francês, numa referência à saída do Sol do signo zodiacal de Peixes.

Como toda tradição, que possui uma força enorme entre o povo, a comemoração zombeteira do ano novo em abril atravessou os séculos e se difundiu pelo mundo. Assim, até hoje, durante o primeiro de abril realiza-se uma série de brincadeiras, pilhérias, saudações, falsas notícias e trotes entre colegas e amigos. Durante um certo tempo, os presentes eram trocados no primeiro dia de abril, como se ainda fosse o dia de ano-bom.

Na Rússia, o ano começava em 1.º de setembro até o reinado de Pedro, o Grande, (1672-1725; rei 1694) que por volta de 1697 decretou que o ano começaria em 1.º de janeiro do calendário juliano (correspondente ao 12 de janeiro do calendário gregoriano).

A prática em comemorar o início do ano em 25 de março foi de uso na Inglaterra até 1751, quando se adotou simultaneamente o calendário gregoriano e o começo do ano em primeiro de janeiro. Em conseqüência, o ano de 1751 começou em 25 de março e não terminou, pois o dia 1 de janeiro de 1751 passou a ser 1 de janeiro de 1752. Desse modo o ano de 1751 perdeu os meses de janeiro e fevereiro, e vinte quatro dias de março. Mais tarde, em setembro de 1752, foram suprimidos onze dias, uma das determinações da reforma gregoriana. Assim, o dia seguinte a 3 de setembro passou a ser 14 de setembro de 1752.

Durante o século XIX era hábito os jornais anunciarem festas, recepções, acontecimentos espetaculares cujo aspecto sensacionalista tinha como principal objetivo atrair a curiosidade dos crédulos, levando-os a se deslocarem para participar de um evento. Ao descobrirem a falsidade, os mais crédulos ficavam furiosos e desapontados. Uma das mais famosas “barrigas”, no jornalismo científico, foi provocada por um primeiro de abril, quando a revista New Scientist, de Londres, noticiou que os geneticistas haviam criado um tomate que tinha a mesma quantidade de proteínas de um bife, denominado de boimate. Tal notícia foi reproduzida pela Veja, no Brasil, que a retificou na semana seguinte. Na realidade, disseminada através dos telex das agências noticiosas, a descoberta foi reproduzida em escala mundial.

Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

é pesquisador-titutar do Museu de Astronomia e Ciências Afins, no qual foi fundador e primeiro diretor, autor de mais de 65 livros, entre eles “O Livro de Ouro do Universo”. Consulte a homepage: http://www.ronaldomourao.com

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