A leitura necessária e fecundante

Northrop Frye em Fábulas de identidade (Nova Alexandria, 2000) discute a identidade da literatura e teoriza a esse respeito. Em determinado momento do texto, defende a posição de que é impossível ensinar literatura: o que se pode fazer é estudar os mecanismos de construção do texto. Diz o escritor: ?É (…) impossível aprender literatura: aprende-se sobre ela de uma certa maneira, mas o que se aprende transitivamente é crítica de literatura. Da mesma forma, a dificuldade freqüentemente sentida em ?ensinar literatura? vem do fato que isso não pode ser feito: crítica de literatura é tudo o que pode ser ensinado diretamente?. Essas palavras delimitam o que se pode fazer na escola e na universidade: literatura rima intencionalmente com leitura, e impropriamente com ditadura – esta última, qualificativo inerente ao estatuto das disciplinas escolares.

Daniel Pennac, em Como um romance (Rocco, 1993), relembra seu melhor professor: ele somente lia em classe. Sem ditados, conteúdos, provas. ?O que fazia ele a mais do que os nossos outros professores??, indaga Pennac. ?Não muito. Sob certos aspectos, fazia mesmo muito menos. Só que não nos entregava a literatura num conta-gotas analítico, ele a servia a nós em copos transbordantes, generosamente… E nós compreendíamos tudo o que ele nos lia. Nós o escutávamos. Nenhuma explicação do texto seria mais luminosa do que o som da sua voz quando ele antecipava a intenção do autor, acentuava um subentendido, revelava uma alusão…?

Não acredito que a exclusiva leitura em voz alta seja capaz, na atualidade, de mostrar toda a infinita possibilidade expressiva, estética e de abrangência do texto literário. Mesmo porque os ouvidos são hoje mais treinados para as obviedades, a repetição nauseante, e para ouvir o próprio e maravilhoso umbigo. Mas é, sem dúvida, o primeiro e mais importante caminho pragmático e exemplar da especificidade do literário. Ler é o que de melhor podemos fazer para compreender o literário, sua natureza e funções.

Tom Zé e Elton Medeiros, na letra da canção Tô, trabalham com antíteses e paradoxos e resumem com felicidade o fim último da aprendizagem: ?tô estudando pra saber ignorar?. Ecos de Montaigne ressoam nos versos brasileiros; há a retomada do ?Que sei eu??, princípio e fim de uma consciência de estudante, de qualquer idade. Na mesma canção, os dois compositores parecem tratar de nossa atuação no magistério: ?Eu tô te explicando pra te confundir/ Tô te confundindo pra te esclarecer?. Quem disse que o mundo tem respostas? Quem disse que a vida tem respostas? Ela tem muito mais enigmas e perguntas do que ?sonha a nossa vã filosofia?. O século 17, mais roteirizado, não impediu que o gênio de Shakespeare cunhasse em metáfora-verdade a idéia da vida como um ?conto cheio de som e fúria?, como descreveu Macbeth.

Como pode o professor conceber a literatura enquanto um mundo de explicações e feitos organizados, classificados em gavetas e escaninhos, quando as obras poéticas e ficcionais explodem em subversão, em rebeldias, em independência? Como podem os estudantes chegar às portas da escola com expectativas de receitas e listas, e pensarem, desse modo, aprender os segredos da literatura ?

Tratar da importância do imaginário e dos relatos não é uma atribuição apenas de professores ou contadores de histórias. Cada vez mais, e mais intensamente, reflexões e exposições sobre a natureza das histórias e como elas se enraízam no cotidiano concretizam-se em páginas e livros. Vozes de jornalistas, filósofos, cientistas, psicanalistas e historiadores unem-se, em coro, para cantar as belezas da literatura e como ela se expande para além das paredes domésticas ou os muros escolares e integra a vida das pessoas que convivem e trabalham nos mais diferentes ambientes. A leitura da literatura ganha relevo e dimensão no olhar entusiasmado de quem descobre nos escritos rios caudalosos, veredas estranhas e fascinantes, encruzilhadas de surpresas e auto-estradas de pensamentos e explicações para o que não compreendemos sozinhos.

A recente contribuição de um casal de psicanalistas, Diana e Mário Corso na obra Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis (Artmed, 2006) reforça essa concepção integradora da literatura e da vida pessoal. Retiro do volume uma justificativa muito adequada para tratar das relações entre as narrativas ficcionais e a vida dos leitores: ?A história de uma pessoa pode ser rica em aventuras, reflexões, frustrações ou mesmo pode ser insignificante, mas sempre será uma trama, da qual parcialmente escrevemos o roteiro. Freqüentar as histórias imaginadas por outros (…), habitar essas vidas de fantasia é uma forma de refletir sobre destinos possíveis e cotejá-los com o nosso. Às vezes, uma história ilustra temores de que padecemos, outras, encarna idéias ou desejos que nutrimos, em certas ocasiões ilumina cantos obscuros do nosso ser. O certo é que escolhemos aqueles enredos que nos falam de perto, mas não necessariamente de forma direta, pode ser uma identificação tangencial, enviesada?.

Sem que nos tornemos leitores e intérpretes dessas criações do pensamento e dos sentimentos de outros homens, a produção cultural estará resumida a datas e nomes sem vivacidade ou vivência. Coisa para ensinar e decorar. Para logo, logo, esquecer. 

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