Eram os escribas, no Egito antigo, aqueles cuja habilidade principal consistia em conhecer os pictogramas que compunham o código de escrita egípcio, formado pelos hieróglifos. Cada símbolo, ao invés de representar apenas um som ou fonema e, junto com outros, criar uma palavra, equivalia por si só a uma idéia. Continha, portanto, uma carga de informação muito maior e mais subjetiva do que uma letra do alfabeto greco-romano, que tanto nos é útil nos dias atuais.
Assim, se torna fácil compreender o nível de complexidade envolvido no aprendizado na arte de representar o que havia na realidade através de símbolos enredados, cuja mudança de um detalhe, em algumas oportunidades, poderia acarretar em total distorção do que deveria ser registrado. E muito havia para guardar, copiar, acumular: relatórios sobre o avanço das construções, andamento das colheitas e armazenamento de alimentos, hábitos da realeza, feitos do faraó e de sua família, avanços das práticas médicas, oferendas aos deuses, recontar os mitos fundamentais da cultura egípcia, entre inúmeras outras informações.
Avaliando tal panorama, não é difícil imaginar a importância dessa profissão, sob a ótica dos habitantes de Luxor: o que poderia ser mais importante para um faraó do que registrar seus feitos à frente de seu povo, ainda mais se considerarmos que tudo seria avaliado por Osíris, durante a travessia deste para o outro mundo? Por isso, era tão importante para o homem do Antigo Egito registrar seus procedimentos na Terra, através da única forma que conheciam, a escrita hieroglífica.
Assim, torna-se desnecessário dizer a relevância que a profissão adquiriu com o decorrer do tempo: em suas tumbas, os ornamentos, o luxo, a quantidade de registros a respeito de sua passagem terrena demonstravam o status social dos que se dedicavam à confeccionar e interpretar os escritos daquele tempo e lugar. Eram também poucos, pois, além da dificuldade inerente à aprendizagem dos referidos símbolos e das intricadas relações que estabeleciam entre si, havia a grande vantagem obtida por quem se engajava em tal ocupação, pois passava a ter acesso a todo conhecimento desse povo, o que não era pouco para a época em que viviam. Consistiam, portanto, em uma elite que corroborava para a manutenção da teocracia que caracterizava a ordem política na ?Dádiva do Nilo?.
Avançando no tempo alguns milhares de anos, chegamos a um país cuja cultura talvez seja tão complexa e incompreensível, embora menos magnífica e expressiva, aos olhos estranhos, quanto era a do Médio e Baixo Nilo, naqueles tempos: o Brasil. Afinal de contas, em nosso amálgama cultural, com múltiplas e multifacetadas expressões, formadas basicamente pelos mesmos elementos de ontologia diversa, misturados, porém, nas mais variadas proporções, encontramos as mais plurais tradições e costumes, belos, dignos de admiração, estudo e registro.
E, assim como os egípcios, contamos com uma classe de eleitos, uns poucos realmente aptos a ler e escrever, na amplitude devida ao que concernem as idéias contidas nesses termos. Segundo o Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística), em pesquisa divulgada em 8 de setembro último, Dia Internacional da Alfabetização, cerca de 26% dos brasileiros acima dos 15 anos estão plenamente aptos a ler e escrever. Sobra assim 74% da população brasileira adulta, de analfabetos plenos ou funcionais.
E quem é essa ?elite das letras?? Obviamente, entre eles estão os que lêem e escrevem este jornal, e mais alguns tantos privilegiados, que não somente freqüentaram uma escola boa ou razoável, mas também receberam em casa ou outro meio de convívio o estímulo à leitura e descobriram alguma forma de prazer no aprendizado. Tais escolhidos, em sua ampla maioria, constituem a camada da população capacitada para realizar os trabalhos mais importantes, ao menos sob o ponto de vista da valoração do produto final, e contam, portanto, com as melhores remunerações possíveis em nossa sociedade, desconsiderando, obviamente, aqueles que vêem nas práticas ilícitas, imorais e reprováveis a chave para a felicidade terrena e plena adequação aos dogmas da Sociedade de Consumo.
E os outros 74%, quem seriam? Outrora, os agricultores das planícies do Nilo, que plantavam e colhiam, mas passavam fome, pois o alimento era prioritariamente destinado ao faraó e sua súcia de divinos, ou talvez operários de tumbas e pirâmides, que carregavam as colossais rochas que até hoje desde onde ninguém sabe, ou morriam esmagados devido à fragilidade dos instrumentos disponíveis para realização das obras naqueles tempos. De qualquer forma, são áqueles a quem é relegado o mais árduo trabalho o menor reconhecimento, e como alento os olhos divinos, que tudo vêem e no tempo certo recompensam, geralmente depois da morte.
Resta uma última pergunta: Como agem os escribas de hoje? Infelizmente, como os mais ?letrados? súditos do faraó. No afã de manter as parcas e frágeis conquistas, preocupam-se em dar a resposta adequada e esperada por quem controla os modos e meios de produção de nossa sociedade, sem perceber que também servem e são explorados, mas, devido ao conhecimento e maior capacidade de produção adequada às demandas contemporâneas, recebem algum reconhecimento. Seduzidos ou coagidos, não usamos do saber adquirido para libertar-nos enquanto povo, mas corroboramos com a situação vigente. Entre a oligarquia minoritária e o povo alijado de quase tudo está a classe dos escribas brasileiros, aqueles que detêm os instrumentos para fomentar a tão necessária mudança de paradigmas na sociedade brasileira.
Para agir em tal sentido, de geração de mudanças, cabe ao professor o papel de líder, pois constitui no mais importante propagador individual de idéias que pode existir. Afinal de contas, tem diante de si, todos os dias, algumas dezenas de aprendizes de escribas, aptos a realizar grandes feitos, se despertados para tanto, de aprender a repassar aquilo que aprendeu a outros, caso perceba que a sociedade injusta não é marcada pela falta de recursos, mas pela má distribuição dos mesmos. Mais uma vez, é possível concluir que a raíz dos males brasileiros está na ausência de educação formal e na desvalorização do aprendizado.