É sabido que a maneira monárquica de exercer o papado não é bem aceita por muitos cristãos da era democrática. Ciente disso, o papa João Paulo II lançou um convite às igrejas para que se manifestem sobre novas modalidades de exercer o “ministério petrino”, sem ferir o sentido das palavras: “Tu és Pedro e sobre esta pedra vou construir a minha Igreja” (MT 16,18).
Trata-se de iniciativa inovadora e corajosa e, embora o papa tenha recebido algumas contribuições, parece que o convite é mais uma declaração a dar frutos a longo prazo. Todos concordam que o atual pontífice mudou profundamente a imagem do papado, tida como intocável, hierática e pouco visível ao mundo da mídia. Karol Wojtyla abriu as portas e janelas do Vaticano, saiu à Praça de São Pedro e se expôs à curiosidade do público, percorreu as ruas da Cidade Eterna, visitou a Itália de norte a sul, atravessou mares e oceanos em busca das grandes metrópoles do mundo, falou aos operários e ao mundo da Organização das Nações Unidas – ONU. Quis encontrar-se com católicos e não-católicos, gregos e troianos.
Com este gesto, o papa tornou-se figura conhecida e mais próximo do povo e, sem ferir as estruturas do primado de Roma, lançou os fundamentos para uma possível inovação no exercício do papado, sem abrir mão do “Tu es Petrus”, rocha inabalável e mantenedor da unidade da Igreja de Jesus Cristo. Evidentemente, não se trata de um legado pronto e esculpido, mas de problema a ser enfrentado com sensibilidade histórica e fidelidade ao Senhor da messe, tanto da parte do sucessor imediato, como dos que vierem a ser eleitos ao longo do terceiro milênio.
A proposta do cardeal belga (cf. Folha de S.Paulo, 25/12/2003) de reduzir o poder, centrado no pontífice romano, parece-me fenômeno passageiro e localizado no norte e oeste europeu e nos Estados Unidos, visto que cada pontífice possui maneira própria de fazer uso dos dons e qualidades a ele concedidos. Wojtyla é, sem dúvida, um “fenômeno ímpar” na Igreja e aos olhos da mídia contemporânea. Fenômeno que não eclipsa a hierarquia do Vaticano, pois os bispos da América Latina, Ásia e África dinamizam suas igrejas com novas experiências sob o olhar e aplauso do mesmo Vaticano.
Os legados deixados por João Paulo II são muitos. Ao longo dos 25 anos, o papa já nos surpreendeu no dia da sua posse (22/10/1978), exortando-nos a não ter medo, apesar da ameaça comunista e da aparente vitória do capitalismo selvagem. À opção feita pelo Terceiro Mundo acrescentou a ênfase à promoção da paz e dos direitos universais do homem em todos os níveis. De sua alma inquieta proveio o maravilhoso gesto do “mea culpa”, face às numerosas responsabilidades históricas dos “filhos da Igreja”. Em outra ocasião, referindo-se à catástrofe nuclear e ao escândalo da fome, comparou-os a dois cavaleiros apocalípticos. “O perigo nuclear e a praga da fome aproximam-se com espanto do horizonte humano como os famosos cavaleiros do apocalipse.” (Ap 9,16)
Mas João Paulo não vive somente de tonalidades dramáticas. Seu coração tem preferência por tudo aquilo que representa esperança e augúrios de paz: “Uma nova aurora parece surgir nos céus da história, convidando os cristãos a serem luz para o mundo distante de Cristo, “Luz que veio do alto para iluminar os nossos passos nos caminhos da paz” (Lc 1,68), da alegria e da solidariedade no serviço ao faminto e desamparado.
Entre os sonhos mais acalentados de João Paulo sempre esteve presente o de encontrar-se um dia aos pés do Monte Sinai com todos os crentes em Deus. Ele desejaria falar-lhes da purificação da Igreja para que todos pudessem falar com mais desembaraço e anunciar com menos “achismos” a “verdade que nos torna livres”. (Jo 8,32). O papa gostaria de reunir todos os testemunhos de salvação, pronunciados no decorrer da era cristã, a começar pelo glorioso martírio do Gólgota, até os mais recentes testemunhos dados nos campos de concentração, na obscuridade dos cárceres e na clandestinidade de toda a era cristã.
Possivelmente, o papa tem ainda algo importante a dizer à humanidade. Normalmente, as novidades vêm no início de um pontificado, mas com João Paulo poderiam também vir no fim…
Vendelino Estanislau
é filósofo, teólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.