Já se comentou nesta seção a riqueza das narrativas orais como uma forma de troca de experiências entre as pessoas, levando-nos a pensar o quanto elas têm a oferecer como estratégia de ensino. Quem assistiu a alguma palestra ou entrevista com Ariano Suassuna sabe o quanto isso é verdadeiro. Sua fala vem entremeada de "causos" dos quais ele lança mão para fixar definitivamente na mente dos interlocutores imagens que dão suporte para a compreensão daquilo que ele está a explanar. Vêm-me à mente vários deles, como a mulher do piolho, que ele utilizou para construir o seu conceito de cultura popular, e a briga entre um gaúcho e um sertanejo nordestino, que uso com freqüência para dar melhor acabamento à idéia que quero passar da relação pedagógica entre aluno e professor.
Mas não é para apontar de novo as vantagens dos causos que me ponho outra vez a tematizá-los. Cumpro aqui o singelo papel de mestre de cerimônias. Todos passamos, direta ou indiretamente, por situações que de alguma forma podem interessar aos demais, seja por uma questão lúdica apenas (o que não é pouco, diga-se), seja pela possibilidade que oferecem de provocar alguma reflexão que desejamos fazer brotar em alguém, seja ainda porque um relato pode despertar no ouvinte alguma ressonância com um episódio de sua vida que guarda semelhança com o que foi narrado.
E foi pensando nesses inúmeros modos de promover interação que a Educação em Pauta, a partir desta edição, está solicitando aos leitores que encaminhem relatos dos quais tenham participado diretamente ou que tenham presenciado como espectadores privilegiados. Toda semana, o jornal vai selecionar um desses causos e publicá-lo nesta seção, abrindo um canal de troca de experiências entre os educadores. Por razões de espaço editorial, o relato deverá ser o mais breve possível. Vai aí já um excelente exercício de escrita, que, no caso de professores, pode ser compartilhado com os alunos, e no pais, com os filhos: selecionar no universo lingüístico disponível a melhor maneira de enxugar uma narrativa sem perder a força expressiva do relato.
E é aqui que eu entro. Para começar o trabalho, na falta ainda de narrativas dos leitores, fiquei de contar um causo que chegou aos meus ouvidos pela boca das pessoas que o protagonizaram. Tudo se passou quando…
O casal e os dois filhos pequenos (um de 4 e um de 5 anos), cheííííssimos de energia, estavam em visita a amigos. Ambiente diferente do de sua casa, não deu outra: põem-se os meninos à atividade de exploração (da qual não se podia dizer que era "sustentável") do espaço que se lhes oferecia. Os donos da casa já haviam feito um curso por correspondência que oferecia a casais sem filhos o mesmo treinamento que recebem os pilotos dos sofisticados helicópteros Apache: capacidade de processar ao mesmo tempo duas cenas diferentes, cada uma monitorada por um dos olhos. E foi-se desenrolando descontraidamente a conversa, embora o casal achasse estranho os movimentos nada convencionais dos olhos dos anfitriões. Num dado momento, o pai era capaz de jurar que vira só um dos olhos do dono da casa arregalarem-se, enquanto o outro permanecia fixado em quem estava falando. No primeiro sinal de exagero das crianças, segundo critérios da mãe, obviamente, esta, firme, catou o mais novo pelo braço e anunciou: "Se você não se comportar, vou te levar na favela e te deixar lá pra você aprender". Funcionou… por dois minutos. Uma vez mais a mãe interveio com a ameaça, e outra vez e mais outra… Até que, como costumam dizer os comentaristas esportivos, num lance mais perigoso nas imediações da grande área, em que a bola quase cruza a linha fatal, a mãe chamou o mais novo e decretou: "Agora você passou dos limites! Vou te levar na favela e te deixar lá, pra você aprender!". Pareceu tão sincera dessa vez, que o menino resolveu se comportar. Assim, a conversa pôde ainda se estender por mais algum tempo.
Final da tarde, todos no carro, a meio caminho de casa, a mãe lembra de uma tia que morava nas imediações, que ainda não conhecia os meninos:
– Benhê, a gente podia aproveitar pra levar os meninos pra tia conhecer, é rapidinho…
– Tááábééém…
Estacionam o carro em frente da casinha simples. Uma senhora vêm recebê-los.
– Drianinha, como você cresceu!
– É, tia… E a senhora, como vai?
Antes que a tia pudesse responder, o mais novo adiantou-se a todos. Com indisfarçável arrependimento mas conformada resignação, com uma educação que há de ter enchido de orgulho os surpresos pais, o menino, mãozinha esticada para o tradicional cumprimento, foi em direção à senhora e, numa candura comovente, assumiu a pena a que havia sido sentenciado horas antes:
– Oi, dona Favela, acho que vou ficar uns dias com a senhora, pra aprender…
Em que pesem algumas questões que podem ser ponto de discussão, como por exemplo o uso irrefletido de imagens cristalizadas (a favela como produto do mal, não como problema social, assim como a leitura em biblioteca já foi usada como castigo para alunos bagunceiros), o exercício mais importante nessa atividade são as decisões, as escolhas dos recursos para captar na escrita as emoções, o humor, as insinuações, a sutileza dos gestos, enfim, tudo o que possa ajudar a preservar no relato escrito a vivacidade do relato oral. A exploração desses recursos é o grande exercício da língua portuguesa, e não a discussão de temas, que não é atribuição específica dessa disciplina, embora seja imprescindível na escolha dos recursos lingüísticos e esteja sempre no horizonte de consideração da atividade. Depois desse exercício propriamente de linguagem, viriam as possibilidades de discussão das imagens sociais que compuseram o texto produzido, motivando pesquisas de diversas ordens: quem de fato mora em favelas, o que pensam, o que os levou a tais lugares… Depoimentos de moradores: novas narrativas aumentando a tecitura do relato que o sujeito fez e ajudando-o a compreender o seu próprio discurso.
Escrevam. Contamos com vocês.
