Morte Natural em Curitiba-Que-Não-Existe

“Ontem, as 17h30, às margens da Rodovia BR- 476, foi encontrado esfaqueado o corpo sem vida de João da Silva, de 25 anos, residente no Santa Helena. João estava desempregado há um ano e vivia da realização de pequenos serviços. Uma rixa antiga, envolvendo uma dívida de bar, pode ter sido a causa da morte. Deixa viúva e filho.”

Uma notinha, no meio do jornal. Outra notinha. Mais um que morre. João morreu como morrem tantos. João morreu como se morre todos os dias.

Como aceitamos a violência, como banalizamos o crime, a morte de João nem manchete de jornal vira. Existem coisas mais interessantes, coisas que chamam mais a atenção: quantos motoristas vão para o litoral no final de semana; quanto vai custar a gasolina; fez sol no final de semana e o Barigüí estava lotado.

E o que deixa de ser interessante e deixa de chamar a atenção, deixa de ser notado. O que não é notado, não existe. O que não existe, deixa de ser verdade.

E a verdade passa a ser que João vivia em uma cidade diferente. Vivia em outra Curitiba. Vivia em Curitiba-Que-Não-Existe. Na nossa Curitiba, loira, saudável, limpinha, gente não morre assim. Gente morre aos poucos, morre de forma chorada, sentida. É assim que nos ensinam: você fica doente, fica velhinho e morre. Morrer de facada, de tiro, só lá no Rio ou em São Paulo.

Como a Curitiba de João não existia, João não existia. Como João não existia, João não deixou de existir, não morreu, não deixou filho nem viúva. E João não vai fazer falta. Aquele corpo morto, furado, vai ser substituído por outro corpo, vivo, de outro João ou de algum José. Por que Curitiba-Que-Não-Existe precisa de seus desempregados, de seus bêbados. De gente que vem de fora, em busca da Cidade Mágica.

Gente que não consegue mais voltar porque sequer chegar consegue.

E o filho que o João deixou também não existia. Como não existia, não vai ficar sobrando pela rua, abandonado, sem futuro. É por isso que em Curitiba não existem menores abandonados. Às vezes, temos a impressão de ver alguém, pequenininho, pedindo dinheiro no sinal ou cheirando cola. É impressão. Ou está aqui por engano: são filhos de alguém que veio de Curitiba-Que-Não-Existe.

João que ninguém conhecia, João que talvez nem morrido tenha, deixou de ser. De ser número, de ser estatística. Por que gente, João não era. Por que em Curitiba não tem gente desse jeito, pobre, feia, viciada, doente. Não aqui. Como em Curitiba não existe essa gente, não existe desemprego, criminalidade, miséria em Curitiba. Curitiba é uma “Cidade de Primeiro Mundo”. Os franceses vêm para cá, se sentem em casa e já chegam gerando emprego para nossa gente bem corada. Diz que lá na Europa é igualzinho…

Sei lá de onde veio este João, se é que veio, se é que existiu. Se existiu, não viveu em Curitiba. Em Curitiba, todo mundo acorda cedo, vai para o trabalho de ônibus biarticulado, sentadinho, confortável, e volta para casa, e anda no parque no final de semana. Os filhos vão para a creche; os doentes vão para o hospital. Quem não tem emprego, entra num ônibus verde e sai com alguma ocupação. Aqui, na Cidade Mágica, todo mundo tem seu lugar, todo mundo tem seu futuro.

Esse João, que não existiu, que não era de Curitiba, que não era doente ou desempregado, que não tinha futuro porque não pertencia ao presente, que deixou de ser número, também deixou de incomodar. Porque o que incomoda em Curitiba, o que é chato mesmo, é o encontro entre o pessoal daqui e o pessoal da Curitiba-Que-Não-Existe. Entre os curitibanos e essa gente de fora. É por isso que de vez em quando acontece um ou outro crime, aqui, na Cidade Mágica. E para acabar com o problema, só impedindo que essa gente saia da Curitiba-Que-Não-Existe. Que fiquem por lá.

Para que aqui, em Curitiba, na Cidade Mágica, continuemos morrendo de morte natural.

Aristides Athayde

é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, Mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Camâra de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), Membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce

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