Arquivo Folha Online |
Dona Zica com Cartola, em 1976. |
Hoje foi dia de luto no samba carioca. Logo de manhã, morreu Euzébia Silva Oliveira, a Dona Zica, viúva de Cartola, o fundador da Estação Primeira de Mangueira, a escola mais antiga do País e a campeã do último carnaval. Ela havia sido internada três vezes em 2002, mas sua morte surpreendeu os amigos, que preparavam a festa de seus 90 anos, no dia 6 de fevereiro, com missa na quadra da agremiação e samba noite adentro. Até a virada do ano, sua saúde era estável. No primeiro domingo de 2003, fez as honras na Mangueira para receber o cantor Gilberto Gil, então recém-nomeado ministro da Cultura.
O cardiologista Roberto Orcades disse que ela estava animada com o carnaval. “Esteve no consultório na semana passada e disse que ia sair na Mangueira de qualquer jeito”, lembrou ele. “Dona Zica achava que era uma criança, daí o número de internações. Ela abusava demais.” A neta de Dona Zica, Nilcemar, informou que ela preparava o lançamento do livro de receitas Dona Zica – Tempero, Sabor e Arte, contando os segredos de seus 80 anos de cozinheira e banqueteira. “Ela estava superfeliz, chegou a dizer que ficava com medo por estar tão bem”, comentou Nilcemar.
Viver intensamente foi o segredo de Dona Zica, nascida e criada na Mangueira. Sua família não era de sambistas, mas a irmã, Clotilde, ou Dona Menininha, casou-se com o ferroviário e compositor Carlos Cachaça, que participaria da fundação da Mangueira. Cartola e Zica se conheceram nessa época, mas nada houve entre eles, pois ambos eram casados: ele com a dona de casa Deolinda e ela, com o pai de suas duas filhas, Vilma, já falecida, e Regina. O romance ocorreria nos anos 50, com os dois já viúvos e Cartola afastado da Mangueira, na miséria, e envolvido com Donária, sua segunda mulher.
“Zica foi a luz na vida dele. Cartola era um sonhador, não ligava para dinheiro, saúde ou coisas materiais. Ela era prática, ativa, sustentava as duas filhas e viu as possibilidades dele”, conta a diretora do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio, Marília Barboza, amiga do casal e biógrafa do compositor. “Eles viveram juntos durante 12 anos até se casarem em outubro de 1964. Na época, ela riu de si mesma, dizendo que uma senhora já de idade como ela se casava como se fosse uma bandeirante.”
Mesmo sem compor ou cantar, Dona Zica foi fundamental. Diz a lenda na Mangueira, que é dela a frase “as rosas não falam”, título do samba mais conhecido de Cartola. Eles haviam plantado roseiras no jardinzinho em frente do barraco e só uma delas floresceu. Intrigada, Zica perguntou ao marido por que e ele, agastado com outros problemas, teria dito a ela para perguntar às rosas. “Mas as rosas não falam, Cartola”, respondeu Zica, dando mote ao samba falando de um amor maduro, que os reconciliou naquela rusga momentânea.
Mas essa não foi a única homenagem declarada de Cartola para Zica. Tive Sim, dos anos 50, seria a resposta aos ciúmes dela e, às vesperas do casamento, em 1964, fez Nós Dois.
Nessa época, o casal tinha o ZiCartola, restaurante na Rua da Carioca, no centro, onde os quitutes de Dona Zica serviam de fundo para a música de Paulinho da Viola, Clementina de Jesus Zé Kéti, Elton Medeiros e outros sambistas que estrearam lá, em shows produzidos por Hermínio Bello de Carvalho. O restaurante só durou dois anos, mas deixou marcas até hoje na cultura brasileira. “Na época, foi vendido, a preço de banana, para Jackson do Pandeiro”, lembra Marília.
Sem o restaurante, Dona Zica insistiu para que ele virasse músico profissional. “Ela queria que ele fizesse shows, compusesse e ele não ligava para nada”, diz Marília. “Só em 1974, quando gravou o primeiro disco para a Marcus Pereira, Cartola atentou para a possibilidade de ganhar dinheiro. Então, passou a compor e a trabalhar muito, como se tentasse recuperar o tempo perdido.”
Com a morte do compositor, em 1980, Dona Zica tornou-se líder da Mangueira, ao lado de Dona Neuma, filha de outro fundador da escola e sua amiga inseparável, ambas matriarcas do morro, onde nada era decidido sem as suas opiniões. Dona Neuma morreu em julho de 2000 e Zica continuou firme como símbolo da Mangueira e, por extensão, do próprio samba. No ano passado, participou do lançamento do Centro Cultural Cartola, instalado no antigo prédio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em frente do morro, e tinha tudo pronto para sair no próximo carnaval.
A morte a pegou antes e a Mangueira, na noite passada, ficou acordada para velar sua primeira-dama, cujo enterro estava marcado para amanhã de manhã, no cemitério do Caju, na zona norte.