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Florisvaldo Fier (Dr. Rosinha)

A leitura e a interpretação de qualquer texto ou livro são sempre realizadas de maneira diferente. Dependem do momento, da idade que se tem, de como anda o espírito, entre outras coisas.

No meu caso, leio um livro hoje e marco alguns detalhes – aqueles que mais me chamam a atenção. Tempos depois, ao voltar a lê-lo, acabo não compreendendo ou não recordando por que alguns detalhes foram anotados. No mesmo texto, outros trechos acabam por me chamar mais a atenção, e os considero mais importantes.

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Escrevo isso porque acabei de ler Memoria de mis putas tristes (título em espanhol), de Gabriel García Márquez. Ao contrário do que se espera de um livro com tal título, a obra é uma reflexão sobre a vida, o amor e o envelhecimento. Lógico que, em razão do título, poder-se-ia esperar tudo, menos essas reflexões.

Li, acredito, no momento certo. Não é uma leitura para adolescentes – não por censura, mas pelo fato de que pouco ou nada significará para eles. Diria, inclusive – tampouco por preconceito -, que se trata muito mais de uma leitura para homens que para mulheres. E principalmente para homens mais velhos e que não conseguiram amar. Quanto mais velho, melhor é a possibilidade de reflexão sobre o passado.

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Ao escrever isso, dá-se talvez a impressão de que não estou querendo que as pessoas leiam o livro. Não se trata disso. É simplesmente a intenção de mostrar que tudo tem seu tempo ("Há tempo de nascer e tempo de morrer", conforme Eclesiastes), inclusive o tempo de compreensão e de reflexão. No caso, como em tantos outros, o resultado da reflexão difere entre gêneros.

Todos vão gostar do romance (como não gostar de Gabriel García Márquez?). Se o leitor ou a leitora for jovem, porém, nada vai significar, em termos pessoais, as reflexões sobre o passado e a velhice. Se for uma jovem leitora, gostaria até de saber qual lhe seria o impacto reflexivo a respeito do romance.

Já a leitora mais "vivida" fará uma interpretação distinta de um homem da mesma idade. Ela, provavelmente, será mais tocada pelas reflexões sobre o amor e a velhice que sobre a questão do homem.

Ao fazer 90 anos, o personagem do livro afirma que sua "nota de aniversário não foi um lamento pelos anos passados, mas ao contrário: uma glorificação da velhice". "Comecei por me perguntar quando tomei consciência de ser velho e creio que foi muito antes daquele dia", diz ele, numa tradução livre. Trata-se de uma pergunta que muitos – inclusive eu – já se fizeram.

Algumas pessoas, entre as quais me incluo (tenho o dia, mês e ano que envelheci marcados na agenda), têm mais ou menos definida a época em que começaram a envelhecer. Para muitos, é algo imperceptível, como afirma o personagem de Memoria de mis putas tristes: "A verdade é que as primeiras mudanças são tão lentas que pouco se nota, e a pessoa se segue vendo como sempre foi, porém os outros é que de fora lhe advertem".

Às vezes, essas advertências não são sinceras, pois você sente todas as dores, da idade, mas o seu velho amigo, ao lhe encontrar 20 anos depois, insiste em dizer: você não mudou nada. Ao que você se sente obrigado, às vezes, a mentir e a simplesmente responder: "Você também".

O livro Memoria… ignora essas advertências e mentiras. É uma poética profunda. É a poesia da descoberta do amor e da possibilidade de por ele morrer.

"Sempre havia entendido que morrer de amor não era mais que uma licença poética. Naquela tarde de regresso para casa comprovei que não só era possível morrer de amor, e que eu mesmo, velho, sem ninguém, estava morrendo de amor." Porém, morrer de amor é para jovens, enquanto que, para os idosos, morrer de amor é a retomada da esperança de um longo viver. É o reconhecimento e a comprovação de que "se envelhece mais e pior nos retratos que na realidade".

Florisvaldo Fier (Dr. Rosinha) é médico pediatra, deputado federal (PT-PR) e presidente da Comissão do Mercosul.