Moratória pública

É conhecido de todos e, se não fosse triste seria até mesmo folclórico, o vezo estatal de descumprir suas obrigações. Desde há muito o que se vê é, freqüentemente, certo desregramento relativo ao emprego do dinheiro público, que nem sempre é usado com parcimônia e para dar cumprimento às reais prioridades sociais. Além disso, quando contrata, o Poder Público é freqüentemente surpreendido em situação de inadimplência de suas obrigações. Gozando de privilégios legais, o ente administrativo renegocia suas dívidas e sobrecarrega o Poder Judiciário com intermináveis discussões que, no mais das vezes, têm como motivação, pura e simplesmente, o desejo inconfessado de não cumprir compromissos.

A desídia do Poder Público é notória e reconhecida até mesmo pela Constituição Federal, que, para dar fôlego ao próprio Estado (em sentido amplo), tratou de criar uma verdadeira moratória para as dívidas públicas pendentes de pagamento dos precatórios requisitórios.

De fato, a Emenda Constitucional n.º 30, de 13 de setembro de 2000, incluiu no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a regra da moratória pública.

Por força da redação do art. 78 do ADCT, os precatórios pendentes até a data da alteração da regra constitucional, desde que decorrentes de ações “iniciais” ajuizadas até 31 de dezembro de 1999, tiveram o seu pagamento parcelado em até dez prestações anuais, iguais e sucessivas. No caso específico do Estado do Paraná, o Decreto n.º 5.003, de 13 de novembro de 2001, disciplinou o pagamento parcelado dos precatórios, fazendo opção pelo prazo máximo de 10 anos.

Não tendo havido qualquer alteração posterior ou regulamentação, de sujeição nacional, aplicável aos entes administrativos, é certo que deveriam estes submeter-se à regra impositiva constitucional, não sendo permitida a alteração do prazo (mais de 10 anos, por exemplo).

A vigência da nova regra foi imediata, o que implica dizer que o vencimento da primeira parcela da moratória ocorreu em 31 de dezembro de 2001. Agora, portanto, em 31 de dezembro de 2002, haverá o vencimento da segunda parcela. A última parcela deverá ser paga em 2010. Ao ente administrativo não se permitiu adiar o início dos pagamentos, eis que nenhum período de carência foi criado pela regra constitucional. Poderia, mas não o fez, a regra matriz na CF, ter previsto que o primeiro pagamento ocorreria, por hipótese, em 2003. Não o tendo feito, todavia, sujeitou os entes administrativos ao imediato vencimento da primeira parcela, no final de 2001.

Os maiores problemas que ocorrerão e, na verdade, já estão ocorrendo, dizem respeito ao descumprimento, pelos entes administrativos, do dever de pagar o parcelamento que, como já dissemos, teve sua primeira parcela vencida em 31/12/2001.

Como podem os credores reagir diante de eventual descumprimento do parcelamento pelo Poder Público?

A regra do art. 78 do ADCT criou possibilidade de opção para o credor, que pode requerer a compensação de seu crédito com débitos tributários de que seja credor o ente administrativo devedor do precatório. Mas, e se essa não for a opção do credor dos precatórios? Isto é, se não pretender optar pela compensação com tributos, que saída terá para a hipótese de descumprimento do parcelamento pelo ente administrativo?

A própria regra constitucional traz a resposta. Segundo dispõe o parágrafo 4.º do art. 78 do ADCT, vencido o prazo sem o pagamento, pode o credor requerer ao presidente do Tribunal competente o seqüestro de recursos financeiros da entidade executada, em montante suficiente para a satisfação da prestação vencida e não paga.

A eventual decisão negativa por parte do presidente do Tribunal competente poderá ser atacada por meio de mandado de segurança, tendo em conta o direito líquido e certo do credor, previsto constitucionalmente, em seqüestrar valor suficiente à satisfação da prestação não paga.

Algumas dúvidas podem ocorrer, quanto àquele requerimento de seqüestro autorizado pela Constituição Federal. A primeira delas diz respeito à legitimidade para sua formulação. É o credor que deve fazê-lo. Que credor? Quer dizer: haveria que se respeitar, para fins de se pedir o seqüestro, algum tipo de precedência? Essa dúvida pode surgir em razão da seqüência dos precatórios, sujeitos a ordem cronológica para seu pagamento pelo ente administrativo. Essa ordem cronológica, que é imperativa para o pagamento espontâneo pelo ente administrativo, estender-se-ia igualmente ao exercício do direito de requerer o seqüestro?

É de todo evidente que a única resposta possível a essa indagação é a negativa, porque não se pode vincular o exercício do direito de seqüestro a qualquer ordem de precedência. A seqüência (a “fila”) dos precatórios existe para o pagamento pelo ente público e não pode interferir no direito constitucional do credor em formular a pretensão do seqüestro em razão da conduta estatal omissiva.

Fosse assim, poderíamos pensar na canhestra situação de o Estado descumprir o parcelamento com o credor n .º 1 (isto é, com o primeiro da seqüência de precatórios devidos) e sujeitar os credores números 2 e 3, igualmente impagos, à conduta ativa do primeiro. Quer dizer, por esse raciocínio, absolutamente insustentável, os credores 2, 3 e seguintes, teriam o seu direito de seqüestro condicionado ao exercício do direito de seqüestro pelo credor n .º 1.

Havendo o descumprimento do dever de pagar parceladamente, todo aquele que se sentir prejudicado pode lançar mão do pedido de seqüestro, que somente a si mesmo beneficiará. E assim deverá proceder todo credor, em relação a seu próprio direito lesado pelo descumprimento do parcelamento.

Nem se diga, porque tratar-se-ia de argumento absolutamente descabido, que o pedido de seqüestro somente teria cabimento após o decurso do prazo total de parcelamento. Esse raciocínio, que é equivocado, poderia ser formulado em razão do interesse estatal de “empurrar” o pagamento de seus compromissos indefinidamente. Na verdade, o texto constitucional não autoriza interpretação nesse sentido. O que se tem, com muita clareza, é que, ano após ano, ocorrendo pelo ente administrativo o descumprimento do dever de pagar cada parcela anual, nasce para o credor o direito de pedir o seqüestro dos recursos necessários e suficientes para a satisfação de cada prestação vencida e não paga.

Se, ao longo dos dez anos de parcelamento, o ente administrativo deixar de honrar seu compromisso de pagar as parcelas, sujeitar-se-á, em conseqüência, a dez pedidos de seqüestro, que deverão ser anualmente deferidos pela presidência do Tribunal competente.

Pensar ao contrário, isto é, no sentido de que somente nasceria o direito de requerer o seqüestro ao cabo do prazo de 10 anos, seria o mesmo que criar prazo de carência de dez anos para o exercício do direito de pedir o seqüestro constitucional. Evidentemente, este raciocínio é inteiramente insustentável, porque levaria a subversão de todo o sentido do parcelamento constitucional, de vez que, na prática, o dever de pagar somente existiria a partir do décimo-primeiro ano.

Em outras palavras, no caso do Estado do Paraná, o ano de 2010 é a data-limite para o exaurimento do cumprimento das obrigações públicas objeto da moratória constitucional e não para que ocorra o nascimento do direito de pleitear em juízo o seqüestro.

Até porque, se assim se pudesse entender, o que teria havido seria apenas e tão-somente um prazo de carência inaceitavelmente longo, sem parcelamento, pois o seqüestro deveria incidir, vencidas todas as parcelas, sobre o montante total do débito.

Também não interfere no exercício desse direito a existência de precatórios privilegiados ainda não pagos. Referimo-nos, aqui, aos precatórios relativos a verbas de natureza alimentar. Para estes débitos não se cogitou de qualquer parcelamento, razão pela qual remanescem devidos na mesma situação jurídica havida antes da alteração promovida pela Emenda Constitucional n .º 30.

O parcelamento dos débitos, por si só, já configurou uma excepcional violência à necessária estabilidade jurídica nas relações entre particulares e Estado. Negar-se, agora, aos particulares, o direito de buscar em juízo aquilo que a própria Constituição Federal previu como regra “punitiva” ao Estado renitentemente relapso, seria francamente injurídico e serviria de estímulo ao Estado “caloteiro”, que tanto empenho e regras modernas, como a Lei da Responsabilidade Fiscal, visam a afastar definitivamente.

Teresa Arruda Alvim Wambier é advogada em Curitiba. Luiz Rodrigues Wambier é advogado em Curitiba e professores no curso de Mestrado em Direito Econômico e Social da PUC/PR

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