É bem provável que em toda história do STF (que surgiu, em 1829, por força da Constituição de 1824, como Supremo Tribunal de Justiça art. 163 -, tendo se convertido em Supremo Tribunal Federal por força da Constituição Provisória de 1890) nunca tenha havido um Ministro com a valentia virtuosa do Min. Marco Aurélio.
Criticado e incompreendido, tido muitas vezes como o Ministro do voto vencido, com força pessoal invulgar, personalidade ímpar e tenacidade exemplar, acabou transformando quase todas as suas teses vencidas em vencedoras (só para citar um exemplo: HC 82.959, que julgou inconstitucional o dispositivo legal da lei dos crimes hediondos que proibia a progressão de regime).
Escutar as perorações do Min. Marco Aurélio sempre um deleite inigualável. Acompanhar a lógica da sua arguta argumentação sempre foi um prazer incomensurável.
Ler seus percucientes votos, ainda que vencidos, era um bálsamo para a alma dos que subscrevemos o Direito penal liberal e o respeito aos direitos e garantias fundamentais das vítimas (ou seja, de todas as vítimas, incluindo nesse conceito os próprios réus quando se transformam em vítimas de uma arbitrária persecução penal).
O Min. Marco Aurélio construiu uma das histórias pessoais mais impressionantes e mais respeitadas dentro da nossa Máxima Corte de Justiça. Ágil, esperto, agudo em suas considerações e ponderações, quase nunca perdia o leme da justiça e da liberdade.
Lembrava o hábil malabarista que passeia sobre um estreitíssimo fio, de uma ponta a outra, sem nunca cair das alturas, porque nunca olha para baixo, sim, só para o alvo (que está em sua frente). Não se perdia nas considerações erráticas do legalismo, não se conformava com o status quo.
Alma irreverente, jurista de visão perspicaz e de imaginação invejável, sempre foi um guerreiro liberal valente, verdadeiro guia (no que se relaciona com o senso de justiça).
De repente eclode um vulcão de incapacidade de indignação. Seria (tristemente) o ocaso de um guerreiro entediado que já não se assombra? Uma mulher, na cidade de Sete Lagoas (MG), subtraiu algumas caixas de chicletes, totalizando R$ 98,80.
A pobre coitada (que não deve ter uma mercedes em casa nem foie gras na geladeira, se é que tem geladeira) foi condenada a dois anos de prisão (pena essa reduzida para um ano e três meses pelo TJMG e mantida pelo STJ). Nosso guerreiro valente e imbatível sucumbiu e não se estarreceu.
Disse (no dia 20/5/09): não se trata de furto famélico e, ademais, a mulher já tem condenação anterior. Aprendemos, antes, com o próprio Min. Marco Aurélio, que circunstâncias pessoais não entram em consideração quando se trata do princípio da insignificância, que deve ter fundamento exclusivamente objetivo.
Não são poucos os julgados (alguns clássicos) do STF que vem afirmando o caráter objetivo do princípio da insignificância: AI 559.904 QO/RS, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 7/6/2005 (Informativo STF 391).
No STF está praticamente assentada a sua jurisprudência nesse sentido objetivo do princípio da insignificância: STF, HC 92.740-8-PR, rel. Min. Cármen Lúcia. O Min. Marco Aurélio decidia nesse sentido: STF, HC 77.003. Veja ainda: HC 92.364-RJ; HC 89.624-RS; HC 88.393-RJ.
No dia 6/6/09, como que completamente obnubilado por um apagão moral, o Min. Marco Aurélio negou liminar no HC 99.144, que postula o restabelecimento de uma sentença absolutória num caso em que três pessoas foram condenadas pelo STJ pelo delito de manutenção de casa de prostituição (CP, art. 229).
Subscrevendo o legalismo ultrapassado de parte da Quinta Turma do STJ escreveu: “A tolerância notada quanto à prostituição não leva a entender-se como derrogado o art. 229 do Código Penal”.
Total obscurantismo em relação ao bem jurídico protegido (que é a liberdade sexual). Tratando-se de pessoa adulta (dona do seu nariz), que mal existe (do ponto de vista profano e secularizado) frequentar uma casa de prostituição ou mantê-la para que o,s adultos a frequentem? Que mal existe na manutenção de um motel?
O Min. Marco Aurélio prossegue: “Para se viver em um Estado de Direito paga-se um preço módico relacionado ao respeito às regras estabelecidas. Somente assim se faz possível a paz na vida gregária”.
O Ministro confundiu regra formal com regra material. Isso não lhe ocorria antes! O tipo penal do art. 229 do CP, da forma como escrito, no Estado de Direito verdadeiro está morto. Devemos respeitar as regras estabelecidas, porém, as válidas (que não se confundem as simplesmente vigentes, no dizer de Ferrajoli).
A paz na vida gregária, na atualidade, é totalmente compatível com as casas de prostituição e os motéis, desde que frequentados por adultos (em liberdade). Ninguém é obrigado a frequentar bordéis, mas os que o fazem ou mantêm devem ter a liberdade de fazê-lo dentro do Estado laico brasileiro.
O Min. Marco Aurélio, nosso exemplar guerreiro e nosso guia, dá a sensação de estar perdendo o olhar distanciado, típico de um renunciante como Schopenhauer (veja A cura de Schopenhauer), olhar esse que só acontece do alto do cume da montanha, que faz desaparecer o pequeno, deixando ver somente o relevante.
Diante dos fatos da vida podemos adotar duas posturas (diz Roberto DaMatta, em Crônicas da vida e da morte, Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 18): aproximação ou distanciamento. Para a aproximação necessitamos de um microscópio.
Para o distanciamento temos que subir ao cume da montanha. Só a visão do cume da montanha ajuda a distinguir o grande do pequeno, o relevante do irrelevante (o que importa ao Direito penal e o que não importa ao Direito penal).
De que adiantam as garantistas e humanistas teorizações iluministas e constitucionalistas se não há juízes, delegados, policiais, operadores jurídicos e cidadãos aptos a corajosamente honrá-las?
Condenar uma mulher que subtrai chicletes (que valem menos de cem reais) a dois anos de cadeia, francamente, é um ato, sobretudo, de desamor, porque o amor é o que liga as virtudes longínquas (esperança) com as próximas (caridade, benevolência). São Paulo, o Apóstolo (citado por DaMatta), disse: de nada vale o sino do melhor metal, se no seu som não há amor (ao próximo, especialmente).
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.blogdolfg.com.br