Ministério Público e Direitos Humanos

O desenvolvimento é a transformação do conjunto das estruturas de uma sociedade em função dos objetivos que se propõe alcançar essa sociedade.

Celso Furtado(1)

A existência histórica de uma lacuna entre as instituições públicas e a sociedade, além da relativização dos direitos mais comezinhos da personalidade humana, também, tem ensejado a construção criativa de estratégias alternativas para a elaboração e consecução de políticas públicas que efetivamente possam atender as necessidades vitais básicas das pessoas que se encontram numa situação mais tendente ao abandono e restrição de seus direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais objetivados no sistema jurídico brasileiro são decorrentes mesmo da adoção (re)alinhamento de orientações internacionais próprias dos Direitos Humanos, quando, então, na constituinte de 1987 e 1988, por opção política, reestruturou-se todo um sistema de direitos individuais e garantias fundamentais que orientassem vetorialmente a organização estatal e o atendimento funcional das demandas sociais. A humanização das relações sociais e, principalmente, dentre elas a jurídica exige antes de tudo uma participação efetiva da sociedade, enquanto liberdade pública e democrática, a qual, também, por si exige um espaço próprio, qual seja: o espaço público da palavra e da ação(2). Já se tem afirmado que as diversas instituições públicas e sociais e dentre elas particularmente a do Ministério Público estão por necessitar de uma maior visibilidade social e dizibilidade política, com o intuito precípuo de que possam efetivamente atender os interesses inerentes à própria constituição social plural e democrática, através da qual a pessoa humana tenha as condições mínimas para a sua superação subjetiva, individual e humanitária na construção de uma melhor qualidade de vida.

A consecução dos direitos humanos é uma decorrência do conjunto de esforços para a manutenção dos interesses sociais mais comezinhos e próprios ao desenvolvimento pleno da personalidade humana. Contudo, é necessário o desenvolvimento deste corolário intermediativo e a capacitação dos diversos atores e construtores sociais para a implementação e efetivação da participação indistinta na busca de resoluções quando forem possíveis das diversas questões sociais basilares. Porém, por mais uma vez, advirta-se que a construção de toda e qualquer resolução que se pretenda adequar a um caso concreto impõe a assunção e estabelecimento de uma participação paritária, e, isto quer dizer: o estabelecimento de um eventual consenso resolutivo deve necessariamente importar no estabelecimento primeiro das condições básicas para a discussão a possibilidade indistinta dos envolvidos estarem presentes constitutivamente ?na mesa? e, apesar de eventual distinção das perspectivas acerca do mundo, afigura-se imperativo o estabelecimento da possibilidade participação na construção paritária da própria resolução deixando, por isso, de ser efetivada por uma única e isolada instância, e, sim, pelo compromisso participativo de cada um dos envolvidos naquele processo intermediativo. A intervenção ministerial já não pode mais ser reduzida a uma mera ?ingerência? intimidativa ainda que se opere para a garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana. A intervenção social do Ministério Público requer o estabelecimento e manutenção das liberdades substanciais(3), enquanto critério para democratização não só da sociedade, mas, principalmente, das instâncias estatais. Os direitos humanos, assim, viabilizam uma nova (re)estruturação teórico-pragmática orientativa dos sentidos que devem ser buscados na (re)significação dos direitos e garantias fundamentais inerentes à condição humana(4), bem como para forjar o desenvolvimento de atribuições institucionais que para além de renovarem os compromissos democráticos, também, proporcionem novas conquistas humanitárias. Em todos os ramos da atividade humana produtiva, mesmo naqueles onde se lida mais intensamente com pessoas e com dramas humanos mais de perto, junto às instâncias jurisdicionalizadas passou a imperar a idéia de que era necessária uma postura neutra e impessoal a fim de se evitar ?transferências? supostamente capazes de afetar a racionalidade técnica do profissional habilitado, fazendo-o, assim, cometer erros, em especial, erros de avaliação e julgamento(5).

Aqui, ressalta-se a instituição ministerial precisamente por suas novas atribuições objetivadas normativamente a partir do texto constitucional de 1988(6). Os propósitos reais e, também, os ideais são subjetivados na proporção de suas projeções emancipatórias segundo os aspectos culturais, sociais e políticos que digam o jurídico, alargando, pois, o alcance participativo das instituições públicas e sociais mais uma vez, particularmente, as jurídico-sociais, e, dentre elas especificamente o Ministério Público. Pois, o enfrentamento dos problemas que se fundam crucialmente no âmbito social e, por assim dizer, também, no jurídico possivelmente pode ser desenvolvido a partir de alianças estratégicas e composições humanitárias que ofereçam contribuições para a formulação de uma nova e melhor condição humana. A constância e a consistência de propósitos humanitários, por certo, ensejaram a própria evolução das instituições públicas e, também, sociais. Contudo, observe-se que uma completa disparidade pode ser projetada a partir da elevação do cunho social e humano que, no fundo, podem esconder as verdadeiras intenções e razões dos países hegemônicos(7). Isto quer dizer que a persecução dos propósitos humanitários não pode servir como uma mera instrumentalidade racional que a todo custo imponha os ideais de prosperidade mundial através da internacionalização de valores que, no mais das vezes, apenas têm servido de argumentos de elevado cunho social e humano para dissimular interesses nem sempre confessáveis. A intervenção operada pelo Ministério Público, na realidade sócio-jurídica seja (re)significando-a, seja (re)construindo-a , deve ser orientada pelas diversas doutrinas humanitárias então oriundas e permeadas pela diretriz internacional dos Direitos Humanos, pois, somente assim será possível uma vinculação fundada num sentimento de responsabilidade, agora, mais do que nunca, renovado pelo respeito pelo outro(8).

E, neste particular, é de se admitir realmente que somente um aspecto da modernidade avançou: a democratização isto é, a transição para a democracia(9). Contudo, esta nova concepção de democracia apresenta uma fragilidade fundamental, qual seja: a falta de legitimidade das próprias instituições públicas que compõem uma importante dimensão na governabilidade estatal. Em virtude disto, adverte Luiz Carlos Bresser Pereira que ?numa sociedade dual como esta, em que 40% da população está abaixo da linha da pobreza, um contrato social hobbesiano não é suficiente para integrar a sociedade e assegurar a legitimidade do governo; um pacto político informal voltado para o desenvolvimento também é necessário?(10). No entanto, não se pode simplesmente concordar com as ideologias liberais e neoliberais supressivas não raras às vezes das instituições públicas representativas do próprio avanço civilizatório da humanidade de uma dada sociedade, quando, não e de forma decorrente do inerente arsenal assecuratório, promovente e defensivo dos direitos fundamentais e também dos mais comezinhos direitos da personalidade humana atualmente denominados em sua totalidade como particularmente próprios à cidadania. Uma concepção democratizante de cidadania não pode escapar a uma interpretação emancipatória que seja fundada na paritária e humanística idéia de participação política das pessoas nas diversas dimensões institucionalizadas do social e do público. Pois, somente assim será possível evitar uma concepção reducionista de cidadania que se configure num status social privilegiado, no qual apenas as pessoas que adquirirem tamanha prerrogativa alcançarão reconhecimento à promoção e defesa de direitos fundamentais que, na verdade, é patrimônio comum a toda e qualquer pessoa. A primeira decorrência perceptível de tamanha desigualdade democrática se funda precisamente na própria discutibilidade da legalidade a qual, portanto, eventualmente enseja a própria ilegalidade. Até porque, como se sabe, nesta transição que se impõe permanentemente a única coisa que não pode ocorrer é a eliminação de etapas quando, não, este é o único caminho a ser percorrido, inclusive, sob pena de inviabilizar a própria transformação institucional. A fragilidade das instituições públicas e sociais caracteriza-se precisamente pela incapacidade estrutural-funcional para evitar e ou superar os constantes obstáculos à efetivação dos Direitos Humanos.

No fundo, isto também tem impossibilitado uma ampla e plena democratização quando, não, do próprio avanço humanitário tanto da sociedade, quanto das formas do Estado contemporâneo. A (re)estruturação democrático-humanitária de toda e qualquer instância estatal e social perpassa pela construção de políticas públicas consistentes, concretas e realizáveis instrumentalmente não só pelas instituições jurídico-sociais, mas, também, de forma participativa, pela própria sociedade, cujo fito precípuo deve ser sempre a plena efetivação dos Direitos Humanos, nas suas mais diversas modalidades doutrinárias. Exemplo importantíssimo dessas diversas modalidades é a doutrina da proteção integral inerente à novel área jurídica da infância e da juventude, então, adotada politicamente e sinteticamente objetivada no artigo 227, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988(11). Enfim, a discussão acerca das possibilidades de efetivação das estratégias oficiais, isto é, das políticas institucionais, certamente, requer a participação cidadã em prol da humanidade, quando, não, pelo simples motivo de que ?podem muito bem oferecer soluções para conflitos que funcionem desde fora da esfera estatal?(12). Conquanto, não se poderia deixar de destacar e, também sentir orgulho da iniciativa do fraterno amigo Silvio Roberto D. Kuhlmann Promotor de Justiça junto ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Proteção aos Direitos Humanos, que, na data de 10 de dezembro de 2005, realizou Audiência Pública, convidando dirigentes e integrantes de organizações não-governamentais, lideranças comunitárias e cidadãos dedicados à proteção e defesa dos direitos humanos, para além de participarem, precipuamente, ofereceram contribuições para a formulação da política institucional de direitos humanos aos órgãos do Ministério Público do Estado do Paraná. A referida Audiência Pública foi realizada no Edifício Sede do Ministério Público do Estado do Paraná Rua Marechal Hermes, 751, Centro Cívico, Curitiba (PR).

Notas

(1) FURTADO, Celso. Um projeto para o Brasil. 3.ª ed., Rio de Janeiro (RJ): Saga, 1968, p. 19-20.

(2) RAMIDOFF, Mário Luiz. Trajetórias jurídicas: desafios e expectativas. Florianópolis (SC): Habitus, 2002, p. 94 e ss.

(3) SEN, Amartya Kamur. Liberdade como desenvolvimento. São Paulo (SP): Companhia das Letras, 2003.

(4) ARENDT, Hannah. A condição humana. 8.ª ed., Rio de Janeiro (RJ): Forense, 1996.

(5) HERMANN, Leda Maria. Por um enfrentamento não violento da violência doméstica. Apud RAMIDOFF, Mário Luiz. Op. cit. p. 99.

(6) RAMIDOFF, Mário Luiz. Op. cit. Impende anotar que, ?… a redefinição do papel ministerial será propriamente do atuar de seus agentes políticos, pois, diante do arsenal de atribuições constitucionalmente conquistado, torna-se não só viável, mas, efetivamente, possível o exercício de estratégias de enfrentamento do conflito?.

(7) WEICHERT FILHO, Guilherme. Globalização: impacto no desenvolvimento brasileiro. Vila Velha (ES): Guilherme Weichert Filho, 2002, p. 20-23. O autor com apoio em Gilberto Dupas e Helena Antipoff assevera que a ?… defesa do emprego, nível de crescimento, defesa do capital, balança de pagamentos, exportação de tecnologia e lucro são as reais intenções de todos os países, sobrepujando as principais razões sociais de prosperidade mundial, a paz duradoura, a alimentação farta e a satisfação geral. A globalização despreza o humanismo e condena o mundo à degradação social… O grande paradoxo do processo de globalização é que ele tende justamente a apagar a consciência de globalidade das relações humanas, criando uma visão individualista do mundo e uma fragmentação nas relações sociais, com o que distorce a compreensão da natureza e do papel integral dos seres humanos, ao passo que a verdadeira educação é aquela que torna o indivíduo consciente, responsável e capaz?.

(8) De acordo com Luís Alberto Warat, o desafio agora é o resgate da pessoa, ou seja, (re) aprender a ser gente. Isto é, ?… Significa apenas que é preciso nos reencontrar interiormente para poder encontrar o outro?. Apud RAMIDOFF, Mário Luiz. Op. cit. p. 100.

(9) PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Crise econômica e reforma do estado no Brasil: para uma nova interpretação da América Latina. São Paulo (SP): 34, 1996, p. 204 e ss. Contudo, como ressalva o autor, ?… outros dois elementos da sociedade moderna o crescimento econômico e a distribuição de renda continuaram ausentes?.

(10) PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Op. cit. p. 205. O autor conclui afirmando que ?Novos pactos e interpretações surgiram sempre a partir de crises…?, contudo, ?… na medida em que isso ocorra, produzirá sua própria interpretação, sua própria estratégia de desenvolvimento e um pacto político correspondente?.

(11) BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. 33ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 144 (Coleção Saraiva de legislação).

?Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão?.

(12) RAMIDOFF, Mário Luiz. Mediação orientada. p. 59-89. In Direito e Sociedade. Revista do Ministério Público do Estado do Paraná, vol. 3, n.º 2, Curitiba, jul./dez. de 2004.

Mário Luiz Ramidoff é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná; mestre (CPGD-UFSC) e doutorando em Direito (PPGD-UFPR); professor das Faculdades Integradas Curitiba; ramidoff@pr.gov.br.

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