Mercosul: superando a crise em tempos de guerra?

Passados doze anos da criação do Mercosul, fatores internos e externos coincidentes envolvendo seus países-parceiros no período de 1999-2002, ainda parecem toldar os horizontes de uma promissora perspectiva de construção daquilo que pode ser o segundo mercado comum do planeta. Aliás, para que isto se torne realidade, em mantidos os compromissos emanados do Tratado de Assunção (26.03.1991), o bloco mercosulista deverá, inclusive, proceder à livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos (capital e trabalho), etapa a ser atingida ao término do processo de convergência da tarifa externa comum (TEC) – teoricamente em 2006! Uma estimativa que pode estar sendo cada vez mais relegada ao exercício de futurologia, dado o recente quadro de divergências e insatisfações na região platina, agravado com o “colapso argentino”.

De fato, a integração assuncena ainda guarda resquícios de mais uma e séria crise, a exigir inegavelmente grande exercício de criatividade, seriedade política e prática solidária intrabloco, para, contornada a fase negativa momentânea, ver implementada as necessárias revisão estrutural e devida correção de rumo que garantam a sua continuidade, evitem a agudização do confronto entre seus membros, ofereçam segurança aos investidores e criem reais oportunidades de melhoria das condições de vida de suas populações. A crise, porém, em que pesem as apostas dos fatalistas do caos de sempre e dos distanciados da realidade internacional, pode alimentar alternativas de solução e até mesmo fortalecer o processo integracionista. Mas será que isso é possível diante de um cenário sub-regional aparentemente conturbado e agora envolto por um panorama internacional conflituoso e de contornos imprevisíveis?

Observe-se que decisão brasileira de suspender as negociações bilaterais de comércio com a Argentina, anunciada no início de julho de 2001, como represália à edição, pelo governo argentino, da Resolução 258/01, que barateou unilateralmente as importações provenientes de países extrabloco e estabeleceu a adoção de câmbio duplo para as operações de comércio exterior, acentuaram as discrepâncias econômicas entre os principais parceiros do Mercosul – em apregoada rota de colisão desde a desvalorização da moeda brasileira em 1999! – e realimentaram a síndrome da implosão do conjunto assunceno, para dizer o máximo, ou acentuaram a idéia da sua configuração apenas como zona de livre comércio, para dizer o mínimo.

O último episódio crítico que impôs novas interrogações ao processo integracionista do Mercosul ficou por conta do “Programa de Competitividade” criado pelo então ministro argentino Domingo Cavallo, em busca de uma solução para os anos de recessão progressiva da economia de seu país. As medidas protecionistas, propugnadas em março de 2001, elevando em 35% as tarifas dos produtos de consumo duráveis e não duráveis (v.g., alimentos, calçados, têxteis), reduzindo para 0% as importações de bens de capital para países extrabloco e desvalorizando o peso argentino para exportações, contaram com a tolerância inicial do Brasil – e acabaram até referendadas em reunião extraordinária do Conselho do Mercado Comum (Buenos Aires, 07.04.2001) -, desde que fossem “transisitórias e excepcionais”. A manutenção de seus efeitos, por meio de ato ministerial (julho de 2001), porém, acabou provocando uma forte reação do governo brasileiro, que pediu a revisão do pacote argentino por atentar contra a essência do Mercosul – que é a união aduaneira – e causar prejuízos a produtos brasileiros com a eliminação parcial das suas vantagens preferenciais no mercado sub-regional relativamente aos de terceiros países.

Mais que isso, a crise restou aprofundada com o reconhecimento público da “falência” argentina e do caos social interno decorrente, a refletir o alto grau de insatisfação popular diante de um contexto da grave depressão econômica e do congelamento dos depósitos bancários dos correntistas (o “corralito”), que gerou a renúncia do presidente Fernando de La Rúa e do todo-poderoso ministro Cavallo, em dezembro de 2001, ampliada pelo anúncio de “calote” nas dívidas externas protagonizado pelas presidências interinas que se sucederam. A partir da posse de Eduardo Duhalde, em 2 de janeiro de 2002, os efeitos sociais internos persistiram, mas a política externa adotada apontou para uma rápida reaproximação com o Brasil e na aposta do revigoramento do Mercosul, cujos parceiros passaram a apoiar as reivindicações da Argentina perante o FMI – até porque do fortalecimento da economia do país vizinho depende a intensificação das metas assuncenas!

E se é certo que o Mercosul vive hoje um momento de extrema debilidade e incertezas, por conta das dificuldades econômicas e estruturais internas de cada membro, tem merecido, por outro lado, o reconhecimento de outros blocos, como a União Européia, que já apresentou uma minuta-tentativa para um acordo de livre comércio inter-regional aos Estados-Partes. O mesmo pode-se dizer em relação ao Nafta, na perspectiva já em andamento da formatação da Alca – questão polêmica, a exigir cuidados e controles locais, mas que não pode ser vista estrabicamente como idéia divisionista ou antagônica, tampouco como americana panacéia!

Por outro lado, longe de representar o fim do Mercosul, a crise provocada pelo “efeito Cavallo” e pelo “risco argentino” deveria servir de lição para os parceiros da integração assuncena, seja por demonstrar a necessidade de amadurecimento político com vistas a um mercado comum por fazer, seja por evidenciar a importância crescente dos blocos econômicos, especialmente em sua vertente comunitária, para sedimentar a paz e a solidariedade entre povos, bem como promover o desenvolvimento social pelo caminho do pluralismo democrático.

É verdade que isso não pode impedir uma visão crítica acerca do projeto e das atitudes de seus sócios estatais. Esse recente descompasso comercial e político envolvendo os principais integrantes do Mercosul, ao qual se somaram as decisões do Paraguai e do Uruguai – o primeiro, aplicando uma tarifa de 10% para 332 produtos da região, e o segundo, elevando em 3% as tarifas de todas as importações (sangrando assim novamente a TEC!) -, na busca de compensações em face das concessões facultadas aos argentinos pela Decisão CMC 1/2001, a sinalizar acumuladas insatisfações setorizadas quanto a um alegado papel de coadjuvantes no bojo do modelo, só fez ressaltar o flagrante distanciamento entre a teoria e a prática integracionista na região platina.

Mas aqui é preciso ter em mente que o Mercosul é uma realidade regional de características multidimensionais, onde interagem forças endógenas e exógenas, a indicar que embora juridicamente inafastável o objetivo último do Tratado de Assunção, isso não assegura uma trajetória linear ao projeto. Neste aspecto, o consolo fica por conta da comunidade européia, ao patentear, do alto de sua experiência cinqüentenária, que o caminho da integração é muitas vezes sinuoso e pouco iluminado, onde não faltam períodos difíceis, entrechoques político-econômicos e circunstanciais retrocessos.

Além de equívocos estratégicos aparentemente maniqueistas, constatados no transcorrer desse curto e denso percurso de doze anos, e sintetizados, de um lado, pela concepção lírica dos que muitas vezes tentaram vender a idéia da integração como o elixir do progresso ao alcance das mãos, e de outro, pelo discurso dos eternos pessimistas (alcunhados de “Cassandras do Mercosul”), cabe o registro de que muitas vezes, igualmente, perdeu-se de vista o verdadeiro sentido dos propósitos últimos do Tratado de Assunção, para se enxergar o Mercosul exclusivamente como bandeira comercial de curto prazo e se tentar fazer dele apenas uma marca comercial vencedora, o que em parte já teria sido alcançado se nos limitarmos a medi-lo em termos de balanças de pagamento e indicadores econômicos comparados.

Ora, para isso não era necessário criar algo tão complexo e tão ousado, como lhe aponta o Tratado constitutivo de 1991. Pelo contrário, a sua legitimidade repousa no objetivo de longo prazo, explicitamente definido para esse vínculo associativo: isto é, o desenvolvimento de um mercado comum, que se assenta sobre a reciprocidade de direitos e obrigações entre os parceiros da empreitada. Ao se reduzir o processo à sua porção comercial comete-se o erro crasso da manutenção de mecanismos precários de controle e funcionamento, gerando em seu interior um clima de insegurança quanto à qualidade e eficácia imprescindíveis à maior incidência de investimentos e de estratégias empresariais, ao maior fluxo de negociações com terceiros países ou blocos, e, maior grau de credibilidade popular e/ou institucional acerca do futuro desse espaço sócioeconômico ampliado.

Na falta desses elementos balizadores, o Mercosul passa a imagem – que já foi altamente positiva entre 1995 e 1996 – de um processo em deterioração desde o primeiro semestre de 1999, quando tornaram-se nítidos a falta de funcionalidade do modelo formal e de seus mecanismos ante os problemas enfrentados no âmbito do comércio intra-bloco e no das negociações comerciais internacionais. A partir daí, e inclusive pela falta de avanço na coordenação de políticas macroeconômicas, multiplicaram-se os desacertos, em que pesem os discursos de “relançamento” e as tentativas de articulações inter-regionais, o que levou o Mercosul a ser visto, então, mais como parte dos problemas e não tanto das soluções dos consorciados – justamente em tempos de enfrentamento das complexas negociações em torno da efetivação da Alca e do aprofundamento de relações com a União Européia!

Mas apesar dos pesares, e contrariando ceticismos e adversidades, o Mercosul “não está morto”. Passados doze anos de seu lançamento, o Mercosul, tanto como realidade regional quanto como idéia estratégica, mantêm sua força, sua vigência e uma boa base de sustentação. Apresenta, porém, notórias deficiências, seja como processo e respectiva estrutura jurídico-funcional, seja como imagem, suscitando dúvidas em termos de poder de barganha, atração de investidores para todos os sócios e de identidade cultural. Inegável, por outro lado, o saldo acumulado no campo da consolidação democrática e do combate às tentações totalitárias, assim como no aprendizado da diplomacia da integração. Irrefutável, também, a capacidade do bloco em incrementar o comércio sub-regional, de perceber a realidade e as mudanças do contexto internacional, de projetar-se como nunca no cenário latino-americano. Razões que, por si só, já justificam a existência do Mercosul e o credenciam a melhores tempos, o que pode ser detectado, inclusive, pela postura pública do atual Governo Brasileiro (leia-se Luiz Inácio Lula da Silva) e por um alimentado otimismo com relação à futura política externa argentina a partir das eleições de abril e maio deste 2003, concernentes a um novo perfil às atuações e metas do bloco, notadamente diante de um mundo em célere transformação.

Por fim, há que se registrar que a configuração institucional definitiva do Mercosul, para além do período de convergência da tarifa externa comum (TEC), terá de decidir entre os caminhos – diferentes quanto a resultado final e resposta aos imperativos da globalização que se espraia – da cooperação ou da integração e, conseqüentemente, entre intergovernabilidade e supranacionalidade. O sucesso ou esvaziamento do modelo passa por esses conceitos, leitura que mais se aclara após os desentendimentos entre Argentina e Brasil, clamando pela necessidade de redefinirem e harmonizarem seus projetos nacionais, desenvolverem mecanismos e regras padronizadoras do comportamento dos atores governamentais e privados, bem como de agregarem à atual estrutura intergovernamental do Mercosul alguns ingredientes e princípios análogos aos que ajudaram a fazer a diferença no contexto integrado europeu – dentre eles, a instalação de um tribunal fixo e independente dos governos, enquanto órgão jurisdicional competente para o controle da legalidade dos atos e da interpretação das normas regionais, visando assegurar a coerência do sistema jurídico comum (ou comunitário) e dar segurança social ao bloco mercosulista.

Afinal, se o mercado comum for de fato a opção qualitativa do Mercosul, torna-se indispensável a figura do tribunal supranacional para estruturá-lo juridicamente. Espera-se que sobre a realidade circunstancial intrabloco, após a crise entre o Brasil e a Argentina, que desacelerou o Mercosul – e por pouco não o implodiu – entre 1999 e 2002, soprem ventos mais lúcidos, capazes de estreitar o laços políticos interestatais, solidificar a solidariedade e a participação internas, além de inspirar medidas mais avançadas com rela-ção ao quadro institucional desse consórcio assunceno.

Tomara que ainda haja tempo!

Wagner Rocha DAngelis

é jurista especializado em Direito Internacional e Direito da Integração, professor universitário (UTP e FIC), presidente da Associação de Juristas pela Integração da América Latina (AJIAL) e presidente do Instituto Brasileiro de Cidadania e Direitos Humanos (IBRADH). E-mail: dangelis_ajial@uol.com.br  ou
ibradh@hotmail.com.

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