Hoje, 7 de junho de 2005, eu acordei ouvindo cantigas de ninar.

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Tem dias que é assim mesmo! A gente acorda com uma música na cabeça. Aquilo fica martelando o tempo todo.

De repente, cantamos um pedaço em som mais alto. Outras vezes, assoviamos um pequeno trecho, sem prestar atenção no que fazemos.

E, se é uma paródia de mau gosto, aí é que gruda mesmo!

Mas, hoje, foi diferente. As cantilenas vieram acompanhadas de imagens e cheiros.

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Lembranças da textura de um pijama de flanela, do cheiro de colônia levemente doce, do abraço com toda a força do mundo.

(É no abraço de criança, com pijama de flanela, que se concentra toda a força do mundo!)

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Não foi difícil relacionar a atipicidade do dia com o aniversário de minha primogênita. Agora, ela é maior de idade, tem dezoito anos. Uma mulher, para olhos de terceiros, não para os meus.

É muito estranho lembrar de uma criança cantadeira e, de repente, vê-la mulher. Parece truque de cinema!

(As fechaduras tinham que ser abertas com muito cuidado, pois ela vivia sentada, à minha espera, no costado da porta por onde eu iria entrar ou sair.)

Os embalos variavam. Iam desde a tartaruguinha que caiu do céu – e mais bonita ela ficou, até a canção ?Till there was you?, em versão nã-nã-nã, a única com a qual eu conseguia fazê-la dormir para, logo após, desmaiar de cansado. Vai gostar de brincar assim lá na creche!

(Houve também momentos difíceis, como no dia em que ela insistia em pegar uma peça de vidro sobre a mesa. Preocupado com a sua integridade física e após tentativas inúteis de convencimento verbal, saquei de um pantufa e dei-lhe, sem força nem piedade, no traseiro cheio de fraldas. Eu me lembro do seu bico e do seu choro de revolta. Ela considera o episódio sua história predileta.)

Coisas que não deixam saudades: o brinquedo que prende o dedo, o quebra-cabeças de gente grande, o pente para desembaraçar os cabelos, o remédio da hora certa, o suco de limão com açúcar esquecido, a tristeza inconsolável pela morte da borboleta no jardim.

Eu sempre ficava dividido entre cantar as canções de serenar tradicionais, as novas, que eu não dominava, ou inventar alguma híbrida, que pudesse lhe transmitir informações relevantes sobre a realidade que enfrentaria em sua idade adulta.

(Ainda me lembro, com um ano e um mês, o seu primeiro vôo solo. Até então, eu só a vira engatinhando ou andando desequilibrada, agarrada ao meu dedo médio, que deve ter aumentado um meio centímetro. Veio pelo corredor, na hora em que eu abri a porta da sala, com as asas abertas, desengonçada. E eu, morrendo de medo de ela bater a cabeça na parede, até segurá-la, girando-a no ar, para reforçar a sua iniciativa. Foi o corredor mais comprido do mundo!)

E as músicas martelando!

A secretária, no meu trabalho, achou graça ao me ver assinar um documento, cantarolando o boi da cara preta! Sem problemas, ninguém é padrão de normalidade.

Entre semáforos, marchas, sinais, barulhos, aquela algazarra urbana, carros embalados por motores malsonantes, voltei para casa com uma idéia pairando sobre tudo: a certeza de que essas cantigas embalaram mesmo foi a minha existência.

Muito além de minhas bolinhas de gude, do cajueiro do terreno vizinho, dos cadernos amarrotados, do muro cerceador, da visão paralisada nas extravagantes bonecas de louça da vizinha, dos segredos dos adultos, descobri, também, que não há melhor acalanto do que uma demanda iniciada pelo som da palavra papai.

Eu, hoje, acordei de um sonho, ouvindo cantigas de ninar.

Sérgio Antunes de Freitas – www.reforme.com.br

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