Maradona é o deus da TV

Quartas-de-final do Campeonato Mundial de Futebol de 1986, no México. De repente uma bola é cruzada na área e um jogador de 25 anos da Argentina sobe para dividi-la com o goleiro Shilton, da Inglaterra. Discretamente o jogador coloca a mão na bola e faz o gol que não é anulado pelo juiz tunisiano Ali Bennaceus. Mais tarde o atacante esclarece que “fiz o gol com a minha cabeça e a mão de Deus”. O lance talvez tenha sido o histórico momento em que Diogo Armando Maradona subiu o primeiro degrau do Olimpo para tornar-se o deus profano e sagrado dos 25 mil fiéis da Igreja Maradoniana.

No Olimpo de Homero os deuses tinham as virtudes dos deuses e os pecados dos homens e esta dicotomia sempre nos acompanhou há mais de dois mil anos. Desde então, às vezes, e ao mesmo tempo e com muito sofrimento, alguns gênios, loucos e santos trafegam por esta fronteira, onde filosofia, arte, ciência e religião nos ajudam a interpretar a gostosa dependência da nossa espécie a esse mistério ou a dolorosa constatação da passagem para o conhecimento, da interpretação dos sonhos, do inconsciente coletivo, da criação dos mitos e deuses e do complexo mecanismo neural que carregamos dentro desta caixa preta acima do pescoço.

Apesar do paradoxo tecnológico, o futebol com seus estádios, holofotes e satélites seria a versão contemporânea para Mito da Caverna de Platão, onde a humanidade é condenada à ignorância, considerando como verdadeiras as sombras, até que finalmente rompe a inércia, sai da caverna e sofre a dolorosa constatação do conhecimento, criando um olhar questionativo e inquisidor para o mundo. Fato que certamente não ocorre com muitos amigos de infância de Maradona que ainda hoje vivem na Favela de Fiorito, no cinturão mais pobre de Buenos Aires, alguns sobrevivendo como “cartoneros” – catadores de lixo -, andando pelas sombras da caverna da exclusão social na Argentina.

A história da Igreja Católica conta com entusiasmo à conversão de homens profanos em santos. A maioria oriunda da nobreza que depois de muito sexo, drogas e rock roll viu uma luz vinda do céu e conversou com Deus pessoalmente. Santo Agostinho era um jovem estudante rebelde que encontrou o caminho da religião, assim como o jovem comerciante São Francisco de Assis que chamou seus ex-amigos de farra para segui-lo numa nova interpretação das palavras de Cristo e São Paulo que depois de muita perseguição e matança de judeus resolveu pedir perdão ao criador. Portanto nada impede que 25 mil pessoas, 15 mil das quais vivem em 50 outros países do mundo, resolvam endeusar a quem nos deu tanta alegria com a bola e que vive o seu momento de calvário nas drogas. Além disso, a Igreja Maradoniana tem sede em Rosário, na Argentina, onde ajuda um hospital infantil para crianças com câncer.

Ele tem 43 anos, está gordo, agressivo e totalmente dependente da cocaína, mas seus admiradores não estão nem aí para sua possível ou não conversão ao mundo dos caretas. Decretaram seu endeusamento, independente de qualquer visão santificada, purificação através da dor ou um auto-conhecimento existencialista. E nem por curiosidade poderíamos identificá-los com o Crepúsculo dos Ídolos de Nietzsche que desconstruiu a marteladas os conceitos de razão e moralidade preponderantes nas doutrinas filosóficas de vários pensadores que o antecederam como Kant, Hegel e Schopenhauer. Mas aquele gol de mão foi o ato de petulância que segundo Nietzsche se faz sempre necessário ao triunfo do homem.

A realidade fantástica do infinito mundo dos sonhos e o nosso imaginário onírico permitem a concepção dos mitos como um artefato humano, segundo o psicanalista Armando Ferrari que em seu livro “Indivíduo universo dos mitos”, lembra ainda as hipóteses do pensador alemão Max Muller, do século XIX, relacionando a construção dos mitos a impossibilidade do conhecimento total da realidade, mesmo com a multiplicidade de significados processados por nossa linguagem e pensamentos. Muller dizia ainda que para um estudo do homem, nada no mundo tinha tanta importância como os Vedas que se proclamavam auto-detentores de autoridade divina.

Sem ser Veda ou fazer gol de mão, mas tocando um bolão na psicanálise Jung, observando a semelhança entre os sonhos e símbolos desenhados por seus pacientes, sacou a idéia do inconsciente coletivo, uma zona ou faixa psíquica onde estariam as figuras e arquétipos de caráter universal, freqüentemente expressos em temas mitológicos. Nas comparações entre Maradona e Pelé, os maradonianos reconhecem o negão como rei do futebol, porque Maradona é Deus e foi criado com a ajuda das centenas de imagens geradas na Copa de 1986, no México. Elas alimentaram o inconsciente coletivo dos milhões de excluídos na Argentina que presenciaram a aparição de Deus pelo tubo da tv.

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