As informações a seguir repassadas aos leitores do caderno "Direito e Justiça" constam do site do Espaço Vital (www.espaçovital.com.br) e se referem à decisão do TRF da 4.ª Região confirmando, em 12 de setembro, a sentença que concedeu indenização à viúva do sargento Manoel Raimundo Soares, assassinado por militares e/ou policiais do DOPS. Todos os detalhes do caso poderão ser analisados naquele site. O sargento Manoel Raimundo participava do "Movimento Legalista", que queria restituir o cargo ao presidente João Goulart, deposto pelos militares. Acusado de subversão, Raimundo fugiu do Rio de Janeiro para tentar escapar da prisão e da conseqüente tortura – e passou a viver na clandestinidade. Em março de 1966, foi preso pela Polícia do Exército em frente ao Auditório Araújo Viana, em Porto Alegre e levado para o DOPS, onde foi torturado por cerca de uma semana. Posteriormente foi transferido para a Ilha Presídio, no Rio Guaíba. No dia 13 de agosto, foi novamente levado para o DOPS. Aí seguiu torturado, desconhecendo-se a data exata da morte. O corpo foi encontrado no dia 24 de agosto. Soares tinha, então, 30 anos. Em 1973, a viúva Elizabeth Chalupp Soares ajuizou a ação, transferida da Justiça estadual para a federal em novembro de 1988. Recursos e incidentes em excesso, petições demasiadas e a quase impossibilidade de obter provas transformaram o processo em trintenário. Em dezembro de 2000, o juiz federal Cândido Alfredo Silva Leal Júnior, da 5.ª Vara de Porto Alegre, proferiu a sentença, mandando indenizar a viúva. A União recorreu. Em 16 de novembro de 2001, o processo foi remetido ao TRF-4. Aí os autos passaram por distribuição, redistribuições, conclusões, impedimento, aposentadoria etc. que consumiram mais três anos e meio de injustificável demora. A relatora, juíza federal Vânia Hack de Almeida, convocada para atuar no TRF-4, que levou o processo a julgamento fê-lo em breve tempo, recebendo os autos conclusos em 11 de julho deste ano. Em dois meses conseguiu ler os autos e formar sua convicção. O TRF-4 manteve a indenização: a viúva terá direito à pensão vitalícia, retroativa a 13 de agosto de 1966, com base na remuneração integral de 2.º sargento, compensando-se os valores que ela já recebia mensalmente. O tribunal concedeu tutela antecipada neste item: desde já a correção da remuneração. A reparação por danos morais será de R$ 222.720,00 – valor nominal, a ser corrigido monetariamente, desde a data da sentença (dezembro de 2000); os juros de mora de 12% ao ano serão contados desde a data do crime até hoje. Cálculo feito pelo Espaço Vital aponta a cifra de R$ 1.905.362,10 só para reparar o dano moral. Os honorários do advogado João Francisco Rogowski são de 20%.(Proc. n.º 2001.04.01.085202-9/RS). A expressão "o caso é muito triste" não está nos autos, mas retrata o sentimento pessoal do juiz Cândido Alfredo Silva Leal Júnior, da 5.ª Vara Federal de Porto Alegre, expressado ao Espaço Vital, sobre a sensível sentença por ele proferida, ao condenar a União Federal pela tortura e morte do sargento Manoel Raimundo Soares, do Exército Brasileiro. Decorreram, até agora, 39 anos desde a brutal morte. E de tramitação processual, já são 32 anos e um mês. Nada indica que o final da ação esteja próximo. O acórdão ainda não foi publicado e a União pode manejar, em tese, três recursos: embargos de declaração, especial e extraordinário – todos contando com a aberração legal do prazo em dobro para a interposição. Se os tribunais de Brasília confirmarem a condenação, virá a fase de execução de sentença. Depois, o precatório – sabe-se lá, quando será pago. Mais do que um "caso triste", ele é tristíssimo". O julgado de primeiro grau e um link na Internet nominam os militares e os policiais civis que teriam sido partícipes da prisão sem mandado judicial e autores das torturas. Todos foram absolvidos criminalmente, durante os anos de chumbo. E depois, o processo "se deteriorou", molhado pela água da chuva – no Arquivo Judicial".
Carta de Raimundo à esposa: "Ilha das Pedras Brancas, 10 de julho de 1966. Minha Querida Betinha: Ainda estou vivo. A saúde que havia chegado ao meu corpo, partiu, deixando a normalidade que você tão bem conhece. Em meu corpo ficaram gravadas algumas das "medalhas" com que me agraciaram. Fígado, intestinos e estômago. Espero de todo o coração que você tenha recebido as cartas anteriores. Esta é a de número nove. Penso que a estas horas você deve estar chorando. Não quero isso. A jovem senhora, valente, das respostas desconcertantes, deve agora, substituir a moça ingênua e humilde com quem tive a felicidade de casar. Nunca pensei que o amor que tenho pelo "meu reboque" pudesse chegar aos limites de uma necessidade. Nestes últimos dias tenho sido torturado pela realidade de estar impedido de ver o rosto da mulher que amo. Eu trocaria se possível fosse, a comida de oito dias, por oito minutos junto ao meu amor, ainda que fosse só para ver. Tenho uma fé inabalável de que os adversários não conseguirão destruir nosso amor. Sei hoje que você tinha razão, em muitas de nossas discussões sobre nosso tipo de vida. Você ganhou. Espero que, no dia em que me ver livre deste cárcere, uma pessoa pelo menos me esperará lá fora. Que o mundo inteiro me volte as costas, mas um rosto e um sorriso amigo eu tenha: o de minha querida e idolatrada Betinha. (…) Tudo passará. A política, a cadeia, os amigos; só uma coisa irá durar até a morte: o amor que tenho por essa mulherzinha que é hoje a única razão de querer viver, deste presidiário Do sempre teu Manoel" (Trecho de uma das muitas cartas que, das celas, o sargento Manoel escrevia à esposa. Quatro chegaram às mãos dela – graças à possível colaboração de agentes do DOPS que não comungavam com a tortura).
Um "acidente no trabalho" durante a tortura: "A vítima -com as mãos amarradas às costas – foi submetida a um banho ou caldo, por parte dos agentes do DOPS, processo que consiste em arrancar do paciente a confissão, mergulhando-o na água até quase a asfixia. Ocorreu um "acidente no trabalho", tendo os pés da vítima escapado da corda que a prendia à lancha e desaparecido nas profundezas das águas do Rio Guaíba, que, a época estava cheio. Hipótese menos provável também foi aventada: a vítima teria sido submetida a torturas às margens do Rio Jacuí, teria sido arrastada (os bolsos de suas roupas apresentavam-se com carrapichos); em certo instante, conseguindo desvencilhar-se, no desespero, teria se arremessado às margens do rio, desaparecendo nas suas profundezas". (Da denúncia formulada pelo promotor Claudio Paulo Tovo – ao pretender a condenação criminal de policiais civis e oficiais do Exército – todos absolvidos).
O mal que foi feito não pode ser desfeito: "A maldade humana não tem limites e existem sádicos e desequilibrados que encontram prazer na dor alheia. O mal pode aparecer como algo banal: alguém cumprindo ordens, apenas porque são ordens, sem qualquer condição de um juízo moral sobre o mal que está causando. A vítima se torna vítima por um acaso, por um golpe do destino, por cruzar o caminho de um destes monstros de maldade".
"O mal que foi feito não pode ser desfeito. Só pode ser reparado. Esta luta ingrata da justiça contra o tempo encontra nestes autos um exemplo marcante e assustador. A justiça desta sentença tem limites, porque a cognição deste Juízo não será onipotente, nem onisciente, nem onipresente. Estou limitado ao material probatório, com as circunstâncias, dificuldades e particularidades de tempos sombrios. Não há garantia de que toda a justiça será feita nesta sentença. Os acusados pelo crime já foram absolvidos no processo-criminal, há muitos anos. Só o que resta é, agora, examinar a pretensão cível indenizatória." (Do juiz Cândido Alfredo Silva Leal Junior)
Celas sem camas, presos quase nus: "Na cela grande, estavam concentrados os detentos. Não havia uma única cama, colchão, qualquer forro ou coberta. Entretanto, a caro custo, informaram aqueles, que são bem tratados, têm cama para dormir, a alimentação é boa e dispõem de relativa liberdade, podendo circular pela ilha, fora do presídio. Embora quase nus, não se queixam da falta de roupas de uso pessoal. Recolhi a impressão de que estão reduzidos a condições subhumanas que os impedem de comunicar-se, não têm qualquer esperança de serem ouvidos, nada reivindicam da sociedade da qual se marginalizaram e que os marginaliza sempre mais.
A escuridão das celas se destina à ação psicológica sobre os detentos e o "engenho" de sua montagem foi resultante de orientação traçada por técnicos do famoso F.B.I." (Relato do advogado Eloar Guazzelli, depois de – como representante da OAB/RS – visitar a ilha-presídio em 14 de setembro de 1966).
Edésio Passos é advogado, ex-deputado federal (PT-PR).
E-mail: edesiopassos@terra.com.br