A prática judiciária tem consagrado o mandado de segurança como instrumento ágil e eficaz para contenção da cobrança indevida de tributos, mas os tribunais têm reiteradamente afastado o processamento da ação quando pretere fatos concretos em favor do combate à ?lei em tese?, exigindo da petição inicial cuidado redobrado na redação do fundamento jurídico.
Conforme definido pelo artigo 5.º, inciso LXIX, da Constituição da República, com os contornos conferidos pelas Leis n.º 1.533/51 e 4.348/64, o mandado de segurança é remédio que protege direito líquido e certo contra ato abusivo de autoridade pública.
Seu manuseio, portanto, constitui meio de realização do princípio da legalidade e, em matéria tributária, sua utilidade é inquestionável e serve diretamente à legalidade tributária como escudo ante eventuais excessos das autoridades públicas (artigos 5.º , inciso II, e 150, inciso I, da Constituição da República).
Esse remédio, porém, não tem alcance bastante para substituir a ação direta de inconstitucionalidade, a fim de dispensar atendimento a ato normativo para todos os fatos presentes e futuros sob responsabilidade do impetrante, com evidente burla à competência do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Estaduais (conforme a origem do texto normativo).
De conseguinte, seu uso preventivo, também em matéria tributária, exige precisa individualização do fato sobre o qual ameaça incidir o ato inválido e a exposição do fato na petição inicial do writ é duplamente afetada.
Essa é uma via de mão dupla: se por um lado, as peculiaridades do mandado de segurança facilitam o ajuizamento da petição inicial ao dispensar demonstração de dano ao impetrante ou perigo ao seu direito (decorrência do caráter vinculado da cobrança dos tributos) (MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 467.), por outro lado, o ajuizamento do writ é dificultado pela necessidade de indicação de fato consistente que exclua o ataque direto à norma viciada.
Em outras palavras, o impetrante não pode pleitear a proibição de cobrança sobre uma classe de fatos genericamente considerados, pedindo, por exemplo, que determinada taxa acoimada de inconstitucional deixe de ser aplicada sobre todas as suas atividades correspondentes (no presente e no futuro).
O problema é que definir se o writ está sendo utilizado em referência a fatos concretos (ou se ataca ?lei em tese?) não é sempre tarefa fácil, sendo extremamente vaga sobretudo em sede de mandado de segurança preventivo a noção de ??fatos importantes? à configuração da hipótese de incidência? que prenunciam a incidência do tributo, na expressão de HUGO DE BRITO MACHADO (MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 467.).
A questão ganha tanto mais importância quanto a atenção que tem recebido nos Tribunais e, em acórdão citado por NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, o Superior Tribunal de Justiça teve conclusão interessante ao exigir indicação de fato não do impetrante, mas da própria autoridade impetrada:
?[…] Impõe-se que a ameaça a esse direito se caracterize por atos concretos ou preparatórios de parte da autoridade impetrada, ou ao menos indícios de que a ação ou omissão virá a atingir o patrimônio jurídico da parte. Em direito tributário, se o autor inquina determinada exação, prevista em lei, de inconstitucional e ilegal, mas não demonstra qualquer ameaça a seu direito de não pagá-la, descabe a ação mandamental, que não tem por escopo interpretar a lei em tese (STJ, REsp 18618, rel. Min. Demócrito Reinaldo, j. 11.5.1992, DJU 15.6.1992, p. 9224.)? (NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado: e legislação extravagante. 7.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 1.594.)
Desde esse ponto de vista, um método facilitador da identificação de mandado de segurança que combate lei em tese consiste em perguntar-se qual o ato da autoridade impetrada que põe em risco o direito do impetrante. Se não for possível imputar à autoridade responsável pela cobrança do tributo nenhum ato em concreto, isso será fortemente indiciário de que a ação está dirigida à própria norma em abstrato, sendo, portanto, descabida.
Assim procedeu o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região em acórdãos exemplares, destacando-se, nesse sentido, que:
?[..] em se tratando de mandado de segurança, o reconhecimento do direito líquido e certo não é finalidade do procedimento, mas pressuposto da concessão da ordem para que a autoridade reputada coatora faça ou deixe de fazer algo (ainda que, como no caso, esteja implícita a ordem, uma vez que o pedido restringiu-se à declaração), já que não se admite mandado de segurança contra lei em tese; mero reconhecimento de direito, sem repercussão na conduta da autoridade, embora amparado pelo ordenamento jurídico (art. 4.º CPC), não pode ser perseguido por meio de mandado de segurança.? (Origem: TRF 4.ª Região, 2.ª Turma, AMS. Processo n.º 200471120046025, UF: RS. Data da decisão: 22.1./2005. Documento: TRF 400117721. DJU 14.12.2005. p. 617. Relator: Dirceu de Almeida Soares. Por Unanimidade. Nesse sentido, a contrario sensu, TRF 4.ª Região, 1.ª Turma, AMS. Processo n.º 200572000007618, UF: SC. Data da decisão: 21.09.2005 Documento: TRF400115906. DJU 26.10.2005 p. 435. Relator: Vilson Darós. Sem grifos no original.)
Segundo essa perspectiva, por exemplo, o interessado teria direito ao mandamus a partir do instante em que a autoridade tributária iniciasse procedimento de apuração do tributo.
Nesse caso, porém, a segurança poderia ser ainda considerada preventiva com relação à cobrança do tributo depois apurado, mas – fundamentalmente – se dirige contra ato já realizado e, assim, é mais merecedora de ser chamada ?repressiva?.
Tendo em vista que o mandado de segurança dito ?preventivo? busca antecipar-se à atuação indevida da autoridade tributária, não há dúvida de que mesmo antes de qualquer iniciativa desta última existem atos importantes do próprio impetrante que já prenunciam inevitável cobrança do tributo (por força da referida vinculação da atividade administrativa tributária).
Praticada, por outro exemplo, a movimentação de mercadorias, entende-se que poderá o interessado impetrar o writ para afastar a incidência do imposto correspondente pelas razões que ocasionalmente apresentar, mesmo que a autoridade tributária ainda não tenha sequer tomado conhecimento do fato, porque a lei não lhe facultará promover ou não a cobrança, sendo isto mera questão de tempo.
Mesmo a inação do próprio interessado, porém, não deverá impedir que recorra ao remédio constitucional quando leis e decretos de efeitos concretos, bem como leis auto-aplicáveis, não deixarem margem de dúvida sobre a cobrança futura. Assim, por exemplo, a incidência de norma que defina situação tributária de contribuintes individualizados, em relação a fatos que não dependem da iniciativa do contribuinte ou responsável.
Em outra palavras, quando a cobrança é inevitável (apenas uma questão de tempo, segundo a diligência da Administração tributária), não há que se perguntar sobre a prática de outros fatos específicos antes da segurança, visto que o risco ao direito do impetrante já está presente.
Uma outra ressalva digna de nota se faz com relação à resposta de consulta administrativa que, como se sabe, vincula a autoridade administrativa para cobrança do tributo que motivou o procedimento, sendo esta a opinião abalizada de EDUARDO ARRUDA ALVIM:
?[…] casos há em que, muito embora sequer se tenha concretizado o fato imponível, está presente o justo receio, que alude o art. 1.º, da Lei 1.533/51. Se o contribuinte, p. ex., formular uma consulta administrativa, em que a autoridade fiscal já expressou seu posicionamento em sentido contrário a direito líquido e certo do contribuinte, parece-nos que, mesmo antes da ocorrência do fato imponível, justifica-se o cabimento do mandado de segurança preventivo.? (Noções sobre a ação constitucional do mandado de segurança sua aplicabilidade no campo do direito tributário. In: Teresa Arruda Alvim (Coord.). Repertório de jurisprudência e doutrina sobre processo tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 95.)
Em conclusão, o adequado manuseio do mandado de segurança implica correta identificação das hipóteses de combate à lei em tese. Essa identificação, com as exceções já mencionadas, pode ser feita a partir do questionamento sobre o ato da autoridade impetrada, responsável pela cobrança do tributo, mas ainda que nada tenha feito em execução à lei, atos do próprio impetrante podem demonstrar o risco ao direito do impetrante, autorizando o processamento da ação.
André Del Grossi Assumpção é promotor substituto em Apucarana-PR e Joelson Júnior Bollotti é analista judiciário e supervisor junto à Vara Federal de Jacarezinho-PR.