No país do futebol há muito vigora uma polêmica sobre o que se convencionou chamar de “mala branca” – ainda hoje compreendida como sendo uma bonificação financeira dada por dirigentes de clubes esportivos para atletas de outras agremiações, a fim de que estes “endureçam” o jogo em desfavor de determinados rivais, concorrentes diretos na briga por posições ou mesmo pelo próprio título do campeonato.
Curiosamente, tem se visto que a corrente que defende essa prática é, na verdade, a mesma que já a condenou e vice-versa – tudo dependendo, é claro, da conveniência do momento, que se subsume, pura e simplesmente, à posição que seu time ostenta na tabela classificatória do campeonato de determinado ano.
A discussão, invariavelmente, cinge-se ao lugar comum, à superficialidade. A moral é posta em apartado e a paixão amadorística dos dirigentes, ecoada das arquibancadas, se sobrepõe impiedosamente aos relevantíssimos aspectos éticos que orbitam em torno da questão, sempre se invocando por manto o “argumento” de que a mala branca é uma velha prática no futebol e que todos ou quase todos os times fazem ou já fizeram uso da mesma em algum momento de sua história, não havendo quem possa condená-la sem estar sendo hipócrita, quer em nome próprio, quer em nome de seus antecessores.
Outro “argumento” que sempre emerge em defesa dessa prática é que a mesma não é crime, pois crime só o seria se a promessa de paga, de recompensa, fosse para que os atletas esmorecessem em campo e entregassem o jogo ao adversário. Já não bastasse, também muito se ouve falar – ressalto aqui que não sei ao certo se por pura ironia ou descarada gozação – que os atletas não atuarão em estado de “doping financeiro” sob promessa de “estímulo pecuniário extra”, pois os mesmos já têm por obrigação natural e inerente ao seu profissionalismo, sempre empreenderem seus maiores e melhores esforços físicos e técnicos na busca por conquistarem um resultado positivo para o clube pelo qual “vestem a camisa”.
Parece bastante claro, portanto, que as abordagens sobre a questão padecem de uma enfadonha mesmice, que oblitera do alcance da visão, a efetiva possibilidade de que a prática do pagamento de “malas brancas” venha, sim, caracterizar um crime tributário. Não podemos nos esquecer que os clubes de futebol são pessoas jurídicas, cuja contabilidade está adstrita à regrastributárias formais. Assim, surge a dúvida: sob qual rubrica os valores que vão rechear a “mala branca” são sacados? Qual o documento contábil que dá suporte a essa operação? Como isso é escriturado e declarado perante a Receita Federal?
A Lei 8.137/90, que define os crimes contra a ordem tributária, dentre outros, institui em seu artigo 1.º e incisos subsequentes, que constitui crime fiscal suprimir ou reduzir tributos mediante a omissão ou declaração falsa de informações às Autoridades Fazendárias, bem como fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos ou omitindo operações de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal. A pena prevista para tal prática é de reclusão de 2 a 5 anos e multa.
Parece algo grave, não? E os atletas que recebem tais valores, os quais incrementam sua renda e patrimônio. Será que declaram a “propina” recebida ao Leão?
O artigo 2.º, inciso I, da aludida lei estabelece que constitui crime da mesma natureza: “fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributos”. A pena para tal crime é de detenção de 6 meses a 2 anos, e multa.
Ora, é chegado o já tardio momento de esquecermos, de revogarmos a malfadada lei de Gerson – mesmo no futebol -, pois o certo não é levar vantagem em tudo, o certo é fazer o certo, é agir eticamente, é resgatar os conceitos de moralidade que devem balizar o agir. O futebol tem um poder mobilizador extraordinário sobre o povo brasileiro, um poder quase que único, verdadeiramente alucinante, que não pode, jamais, em hipótese alguma, se prestar a disseminar algo que não seja eminentemente positivo.
Logo, se não se importam com a moral, com a ética, com a natureza do exemplo que disseminam, que então respeitem a lei ou respondam à Justiça!
David Rechulski é advogado especializado em Direito Penal Empresarial e Direito Público e sócio do escritório David Rechulski Advogados.