Diante da iminência da reforma da Previdência, tem sido ponto comum no discurso do governo federal a idéia de que os juízes de direito e os promotores de justiça seriam uma “casta privilegiada” e, pior, que estariam, agora, egoisticamente, procurando manter seus “privilégios” correspondentes à aposentadoria integral, dois meses de férias por ano e irredutibilidade dos vencimentos.
O discurso governamental conclui que, para salvaguarda da nação brasileira, seria necessário acabar com tais “privilégios”, equiparando os magistrados e membros do Ministério Público aos demais trabalhadores da iniciativa privada, tudo em nome de uma reforma da Previdência, “igual” para todos, não obstante o próprio Governo reconheça que os juízes e promotores, que têm carreiras assemelhadas e paralelas, nelas ingressam após rigoroso concurso público de provas e títulos e, após a posse, devem, necessariamente, ir trabalhar, por vários e indefinidos anos, no interior do país, normalmente em localidades que não escolhem e de pequeno porte. Lá, às vezes solitários, longe de seus familiares e amigos, em muitas ocasiões vêem-se privados, inclusive, do lazer, haja vista que são rotineiramente “vigiados” pela comunidade onde residem, quando não, ameaçados de morte, o que, aliado ao descomunal volume de trabalho a que são submetidos (devido à crônica carência estrutural do Poder Judiciário e do Ministério Público) e a não haver horário definido de trabalho (juízes e promotores não batem ponto, pois trabalham em regime de plantão, 24 horas, inclusive feriados e fins de semana), deixa pouca margem para o relaxamento mental. Além disso, os juízes e promotores de justiça também são proibidos de exercer mandatos políticos e são obrigados, por lei, a se aposentar aos 70 anos de idade, justamente quando muitos estão no auge de sua produtividade intelectual. O governo quer equiparar todos, mas não admite que juízes e promotores possam fazer greve, que tenham direito ao FGTS, nem ao pagamento de horas extras, bem como exerçam atividades privadas, salvo o magistério, dentre outros “privilégios” (para usar o mesmo distorcido tratamento) dos trabalhadores da iniciativa privada, justamente porque não são iguais a eles. A contradição fala por si só.
O governo também se esquece, que, no que diz respeito aos vencimentos, os promotores e juízes não percebem os valores de 17, 20 ou 30 mil reais que vêm sendo propagados na imprensa. Pelo contrário, o vencimento inicial de juiz e promotor, nos Estados, gira hoje em torno de cinco mil reais e caso a reforma seja aprovada cairá para algo em torno de quatro mil. Para ganhar o teto do STF é preciso trabalhar a vida inteira e chegar ao final da carreira, vale dizer, no mínimo 35 anos de atividade.
Também não é demais destacar que os bons vencimentos (bons, mas não excelentes para o padrão das carreiras jurídicas no Brasil – como já foi dito, é discurso retórico, vazio e hipócrita, a comparação dos vencimentos de carreiras de Estado com o salário mínimo vigente), a irredutibilidade dos vencimentos, a garantia de duas férias anuais e a aposentaria integral, correspondem aos poucos atrativos das carreiras de Estado. Assim, os melhores bacharéis em direito, aqueles que sabem possuir conhecimento técnico diferenciado da maioria e, que conjugam enorme potencial profissional à ilibada conduta, ao se graduarem, podem, hoje, optar: trabalhar nas grandes bancas de advocacia ou em importantes empresas privadas, percebendo vencimentos tão dignos, quanto os da Magistratura e do Ministério Público, sem o extenuante volume de serviço (pilhas diárias de processos para analisar), sem as privações das carreiras de Estado e, ainda, com a significativa possibilidade de enriquecer com os ganhos de causas que levarem à Justiça ou, por idealismo, prestar concurso público de ingresso na Magistratura ou no Ministério Público e gozar das prerrogativas acima referidas.
Como se vê, o que estas reformas (a da previdência e as que se seguirão, como a do Poder Judiciário) farão como propostas, em verdade, é descaracterizar o profissionalismo e a competência que, hoje, apesar de todo o crônico abandono estrutural do Estado, ainda preponderam no Poder Judiciário e no Ministério Público.
Ademais, as nações que professam por um Estado Democrático de Direito e se preocupam, assim, com a independência dos Poderes, tratam de forma diferenciada determinadas funções, notadamente as públicas e, principalmente, aquelas alusivas às carreiras de Estado (ou seja, carreiras que dão existência e razão de ser ao próprio Estado), como a Magistratura e o Ministério Público, aquela pertencente ao Poder Judiciário e este, não pertencente a nenhum dos Poderes do Estado, mas com total independência constitucional de qualquer um deles. Tudo isso, não para privilegiar os integrantes destas carreiras, mas para salvaguarda da própria sociedade, evitando que os julgadores e promotores de Justiça sejam técnica e moralmente despreparados, possam ser influenciados ou, que ainda, possam ter receio de investigar e processar alguém influente, ou não ter conhecimento técnico suficiente para defender os interesses difusos (ex: meio ambiente, consumidor, patrimônio público, criança e adolescente, deficientes, dentre outros) e individuais indisponíveis; ou, possam, ainda, ter medo de defender a sociedade como fiscal da lei (no caso dos promotores) e decidir, desta ou daquela forma (no caso dos juízes), dependendo de quem seja a parte no processo.
Ou seja, tanto a Magistratura quanto o Ministério Público exercem parcelas da soberania do Estado e, enquanto forem estruturas de Estado fortes e técnicas, não se curvarão a nenhum governante arbitrário. O que a população deve compreender, então, é que juízes e promotores submissos (seja no plano técnico, seja no plano moral, seja no vencimental) somente interessam aos déspotas, que assim criam imunidades às conseqüências de seus desmandos; e não à população.
O que estamos assistindo, assim, é a pretensão de sucateamento do Poder Judiciário e do Ministério Público, pois a questão não é salarial, como prega o governo e repete a mídia. O problema vai além: caso permita-se agora o ferimento à prerrogativa de irredutibilidade vencimental (que é assegurada constitucionalmente não só aos juízes e promotores brasileiros, mas a todos os funcionários públicos brasileiros), bem como o direito à aposentadoria integral para os atuais e para os futuros integrantes, o Executivo, além de ingerir-se na esfera alheia, conseguirá inicialmente enfraquecer as carreiras, para, em seguida, certamente adotando novo discurso retórico e de engodo à população, implantar – como já é anunciado em outra “reforma” que tramita no Congresso Nacional – o controle externo do Judiciário e do Ministério Público. Daí para frente, bastará manter a ameaça constante de demissão daquele juiz e promotor, que ousar tomar posições contra os governantes desonestos de plantão, ou contra um seu aliado, para que a sociedade brasileira finalmente entenda, infelizmente a destempo, o quanto se pretende regredir.
Rodrigo Régnier Chemim Guimarães
é promotor de Justiça em Curitiba, professor de Direito