A condenação rápida e, como consta da sentença, “exemplar”, do estelionatário Bernard Madoff, à pena máxima de 150 anos de prisão, por um juiz federal de Nova York – um ano apenas depois do início da investigação -, sua imediata prisão, onde terá que desenvolver “trabalho duro” e o sequestro de parte dos seus bens (US$ 1,2 bilhão) fizeram eclodir instantaneamente comparações entre a Justiça criminal norte-americana e a brasileira.
A tendência, nessas horas, quando nosso complexo de inferioridade explode como um vulcão, é quase sempre vangloriar o “produto” estrangeiro em detrimento do nacional.
Em Clóvis Rossi a sentença “exemplar” do juiz Denny Chin despertou, como ele mesmo disse, “um baita” sentimento de inveja (Folha de 30/6). Frederico Vasconcelos (Folha de 30/6) comparou o caso Madoff com os do Banestado e do Banco Nacional, que ficaram praticamente impunes.
Disse ainda: no Brasil quase que não existem investigações integradas, a confissão do réu não basta para terminar o processo, não temos o “plea bargaining” (negociação entre réu e Justiça), o processo é moroso, banqueiro não vai para cadeia (Cacciola é exceção), o criminoso não pode ser algemado [isso é exagero], não pode ser mostrado para a mídia [o Brasil do atraso é o da humilhação!], não se cumpre pena superior a 30 anos etc.
Refestelada de elogios, a Justiça norte-americana (sobretudo quando comparada com a nossa) até parece um mar de rosas. Mas não é bem assim. O seu sistema de Justiça criminal negociada (“plea bargaining”), embora funcional, é muito criticado porque retrata um patente desequilíbrio entre o acusador e o réu (acusa-se o Ministério Público de chantagem – overcharging, de blefes (bluffing) e de abusos – overrecommending).
O advogado, por mil razões, nem sempre cumpre bem o seu papel (de amparo ao réu), o juiz nem sempre examina a lisura do acordo celebrado etc. De outro lado, apesar da sua decantada eficácia investigativa, é certo que tão-somente US$ 1,2 bilhão de bens foram recuperados, até agora (no caso Madoff).
O prejuízo total está estimado entre US$ 13 e 65 milhões. Como se vê, centenas e centenas de vítimas ficarão a ver navios (porque o que foi recuperado até este momento é muito pouco para satisfazer os ressarcimentos devidos e necessários às vítimas).
Todas as comparações e análises são úteis (porque temos muito que evoluir no item Administração da Justiça), mas merecem nosso mais contundente repúdio as aberrantes e antirrepublicanas críticas e “soluções” propostas por Jorge Hage (Folha de 3/7).
São elas: (a) mudança na legislação e na interpretação dos “famosos” princípios da ampla defesa e da presunção de inocência; (b) o condenado no Brasil só vai para a cadeia depois do trânsito em julgado final; (c) os advogados sabem tornar a justiça morosa; (d) o processo judicial brasileiro tem que ser ajustado para enfrentar “inimigos outros”, como o crime organizado, o crime financeiro e a corrupção.
Nenhum tribunal de país civilizado, na atualidade, aceita qualquer tipo de transigência com as garantias da ampla defesa e da presunção de inocência, tal como se acham descritas nas constituições, nas leis internas e nos tratados internacionais (art. 8.º da Convenção Americana de Direitos Humanos, por exemplo).
Já existe um padrão mínimo mundial de civilização em torno dessas garantias, que se acham protegidas por um princípio, reconhecido frequentemente nos tribunais internacionais, chamado “vedação de retrocesso”.
Nenhuma lei nova pode retroceder em matéria de respeito aos direitos e garantias fundamentais da pessoa. Nenhuma opinião punitivista extravagante pode ter força de destruir o que a evolução civilizatória (com muito sacrifício) já conquistou.
Não é verdade, de outro lado, que, no Brasil, o réu não pode ser preso antes do trânsito em julgado final da sentença. Gente da elite, so,bretudo quando se vive e se trabalha em ilhas da fantasia, conta com muita dificuldade para perceber que um terço da patuléia carcerária no Brasil (ou seja: cerca de 140 mil, dos 440 mil presos) está recolhida nos nossos imundos e desumanos cárceres sem nenhuma sentença condenatória definitiva. Todos estão presos antes da sentença final condenatória.
A distinção marcante entre os EUA e o Brasil não está, destarte, na (im)possibilidade de se prender antes do trânsito em julgado, sim, no desigual tratamento das pessoas.
Entre nós, enquanto o pobre, em regra, é preso provisoriamente, o rico quase nunca o é. Foi o pensador francês Tocqueville que mostrou a abissal diferença entre o norte-americano e o povo do seu país: os americanos são iguais, respeitam o princípio republicano da igualdade e se tratam por “você”. Em países de raiz aristocrática, como são França e Brasil, a desigualdade de tratamento está presente em todas as relações sociais.
O famoso “você sabe com quem está falando”, imortalizado por DaMatta e decorrente da estrutura hierárquica da nossa sociedade, bem explica por que os ricos dificilmente vão para a cadeia.
Não é que não possam ser presos, eles simplesmente não vão para o cárcere em virtude da nossa complexa e hierarquizada formação social e cultural, que é totalmente divergente da norte-americana.
Pretender suprir esses déficits culturais históricos assim como as brutais carências das investigações brasileiras ou mesmo as gritantes deficiências da nossa combalida Justiça formulando propostas conducentes a cortar ou reduzir direitos ou garantias fundamentais constitui um retrocesso inominado. Não temos que alterar a arquitetura jurídica do nosso Estado de Direito, sim, reivindicar profundas mudanças no nosso modelo investigativo, nas nossas instituições ou mesmo no modelo (ultrapassado) de solução conflitiva das infrações penais (vale recordar que, nos EUA, 92% dos casos são resolvidos por negociação, que lá se chama “plea bargaining”).
Esse é o caminho que nos parece defensável no atual estágio civilizatório em que nos encontramos, não a babozeira discursiva e inconstitucional do Direito penal do “inimigo”, como se fosse possível aceitar a diferenciação, proposta pelo professor alemão Günther Jakobs, entre o Direito penal do “cidadão” (com garantias) e o “Direito penal do inimigo” (sem garantias).
No Estado republicano e humanista de Direito constitui obrigação primária de todo indivíduo defender os direitos e garantias fundamentais das vítimas, ou seja, dos mais débeis (ou dos que se tornaram débeis numa relação social concreta). Essa defesa, por coerência, acaba se estendendo automaticamente em favor dos réus ou suspeitos ou acusados, no preciso momento em que eles são transformados em vítimas diante da torturante máquina policial ou judicial do Estado ou frente a ideias aberrantes, retrógadas e antirrepublicanas centradas na ideologia do inimigo (que vem de Hobbes, Schmitt e tantos outros nazistas). A humanidade avançaria largamente se essa postura de defesa do débil, de Ferrajoli, fosse bem compreendida por todos.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.blogdolfg.com.br